"Silencio... No hay banda." Apenas a carcaça de um canguru coberta de moscas fede por aqui. O sibilar da serpente faz-se ouvir por acolá. A mesma realidade, que por vezes é mais estranha que a ficção, terá sempre um maior primeiro impacto quando exposta em forma de sons extraídos à Natureza. Tentar compreender a caixa de Pandora - nas mãos de Lynch - implica estar atento a uma sinalética (por vezes disparatada) que envolve cowboys transeuntes e uma complexa malha de referências. Ghost Towns é um objecto uno, indubitavelmente conceptual e auto-suficiente, ainda que possa ser complementado pelas fotos exibidas em www.room40.org/ghosttowns.shtml (que fazem parte de uma exposição artística que combina a componente visual e sonora do projecto). São os sentidos que dirigem este filme, que pode tomar o rumo apocalíptico de 28 Dias Depois - Queensland (onde os sons foram captados) no lugar de Londres - ou, favorecido o trabalho de fotografia, o de Walkabout - a aventura iniciática aborígene de Nicolas Roeg. Durante 19 minutos cabe a cada um tomar o lugar do realizador, cometendo todos os caprichos e excentricidades que isso implica.
Não me recordo de melhor altura que esta para abraçar o género à parte designado por field recordings. Os seus impulsionadores externos são vários: o misticismo do Animal Collective, o existencialismo élfico no vibrato de um bardo (sim, aquele tipo de barba sul-americano) e um burro chamado Pavarotti (??) que tem direito a horário nobre. O progresso em modo rewind em breve colidirá com as raízes. O dia está maravilhoso para um piquenique, e, ainda que custe a crer, o saudável crescimento dos legumes numa horta continua a ser - para alguns - uma preocupação prioritária à necessidade de comprar um telemóvel com GPS, ABS e BCG. Ghost Towns deve também ser prioritário na wishlist de todos os que sempre sonharam em viajar até ao continente australiano e nunca o puderam fazer. Lawrence English (também ele proprietário da Room 40 que se encarrega deste lançamento) tem caule em diversas linguagens musicais e suficiente know-how para fazer deste seu material um convidativo portal para o universo dos field recordings. Sem que isso resulte em bocejos.
Moldado a partir de um registo cru (apenas alguns tons foram manipulados), Ghost Towns singra junto do receptor através da bidimensionalidade própria da deslumbrante teia de aranha que, apesar de atraente na sua artificialidade, é essencialmente uma armadilha. Ao longo da desértica paisagem, nem tudo corresponde ao que o ouvido percepciona. Pode ser aquilo que o bom senso rejeita. Cada som reivindica uma segunda abordagem mais reflectida (tal como acontecia com as polaróides que inundavam a capa de No Code dos Pearl Jam). Quando a matéria surpreende por ser indefinida, remete obrigatoriamente para um processo de distinção progressivo. A lógica que conduz todo o conceito é a do eclipse, e, neste caso, o jogo de contrastes verifica-se principalmente em duas frentes: na energia cinética dos corpos contraposta à inércia do que jaz morto e, de um modo mais evidente, na alternância entre os planos micro e macro.
Um disco de field recordings será quase sempre um catálogo de viagens com páginas em branco a preencher pela imaginação. A "viagem de postal" que Marante canta ao seu bom jeito "popularucho". No pior dos casos e perante maior dose de cepticismo, será um objecto curioso a que se recorre quanto tudo o resto aborrece o ouvido. Tão longe e tão perto.