Um grupo de professores curdos caminha numa zona montanhosa, transportando à s costas quadros negros de xisto, à procura de miúdos para ensinar. De súbito, um helicóptero sobrevoa o local e a pequena comunidade de indigentes dispersa. O traço humanÃstico da realizadora Samira Makhmalbaf no filme Blackboards (Takhte Siah, no original) é comovente em certas passagens e pinta, sem demagogias, um retrato tocante do Irão e das suas gentes na actualidade.
É sabido que o Irão de hoje causa repulsa aos olhos ocidentais – nem poderia ser de outra forma. Sobretudo depois de a boa vontade reformista ter sido chumbada numas eleições vergonhosas na primeira metade deste ano. Entregue aos conservadores, o paÃs só muito lentamente se abre ao resto do mundo. As artes são uma fuga possÃvel, talvez a única a astutamente fintar o poder. O cinema iraniano é um excelente e prolÃfico exemplo, mas também a música dá mostras de se querer dar a conhecer num intercâmbio de culturas que timidamente se começa a desenhar.
O colectivo Ghazal vem de Teerão, a capital iraniana, e faz uma música evocativa da região, das suas tradições e da sua poderosa herança cultural. A musicalidade quase ébria (definitivamente serpenteante) das suas longas composições conduz o nosso imaginário para o Médio Oriente, essa região do globo em permanente conflito, seja de valores, de interesses ou de porcarias que parecem não ter razão de ser. Tudo aquilo é tão diferente do nosso quotidiano, que se torna irresistÃvel fazer julgamentos precipitados e evangelizar o interlocutor da discussão com frases feitas e ideias preconcebidas. Um estudo aprofundado daqueles povos, dos seus hábitos e das suas ancestrais crenças leva a refrear a análise instantânea e imatura, própria de quem não lê jornais e não se interessa pelo resto do mundo.
É música do mundo, claro está, mas seria mais preciso chamar-lhe música de Teerão. O cruzamento do som indiano com salpicos persas. A improvisação que leva a um ponto num novelo que quanto mais se mexe, mais difÃcil é encontrar a meada. Um ponto que seguramente não é o de partida. Há nisto um encantamento de serpentes, uma coisa muito própria, uma ruralidade longÃnqua que não faz sentido no auto-rádio de um carro, no meio da confusão de uma grande cidade. Desde 1997 que o colectivo anda a surpreender meio mundo com as suas performances. Este The Rain é, aliás, o registo de uma actuação de há três anos, em Bern, na SuÃça.
O diálogo entre o kamancheh, um violino tradicional do Irão, e a cÃtara, um instrumento de origem hindu, é perfeito em “Fireâ€, a faixa de abertura. O kamancheh é uma câmara de madeira, que funciona como uma caixa de ritmos, coberta por uma membrana de origem animal. As suas cordas são de seda ou de metal, e segura-se como um violoncelo. A parte das peles é assegurada pela tabla, um instrumento de percussão originário do norte da Ãndia. Historicamente, houve um perÃodo de aculturação que explica a execução instrumental a dois idiomas, como sempre acontece sempre que um povo exerce influência polÃtica e de outra ordem sobre outro: aqui foi a música hindu a receber inputs técnicos da tradição persa.
Mas, longe de dar o mote para uma aula de História chata, o disco está interessado na demanda do Santo Graal da exploração artÃstica, no puxar ao limite a herança para criar algo de novo. Algo estranhamente sedutor, por demais ornamentado e cheio de recortes estilÃsticos. Em três faixas que duram entre quinze e vinte minutos cada uma, há espaço suficiente para buscar sons que nos transportam para paragens tão distintas das nossas. A voz é um pequeno decalque, uma nota à margem do pano sonoro, para não chamar o ouvinte à realidade, para o não distrair da hipnose controlada. “Dawn†é uma peça belÃssima nesse sentido.
Quando a voz chega, lembramo-nos que não estamos no dorso de um camelo a percorrer um deserto em direcção ao crepúsculo, mas a lucidez dura poucos segundos. Em “Eternity†nota-se uma bem conseguida imitação rÃtmica da chuva, num diálogo nervoso entre dois instrumentos de cordas, com picos de excitação e acalmia. Um banho free form no discurso desbotado da tradição, de qualquer tradição. Porque esta é a forma suprema de respeitar os avós e não entediar os netos.