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John Vanderslice Cellar Door

2004
Barsuk


Se John Vanderslice se esforçasse por ser um gajo normal, ir à missa ao domingo e lavar os dentes duas vezes por dia, não teríamos que levar com discos como Cellar Door. Mas, como o homem não faz nada daquilo - descontando a parte da higiene oral, que não pudemos averiguar -, rabinhos ao alto porque isto é injecção pop, daquelas que não envergonham e só fazem bem à tosse. Da cada vez mais anoréctica galáxia de estrelas pop de hoje, depois de obviamente subtraídos os dividendos do lixo televisivo e da pasmaceira rural e urbano-depressiva (só porque é giro), não resta muita tinta para se escrever sobre a pop por si só, sem suspensórios experimentais e demais adendas estilísticas. Vanderslice é um resistente, uma alma penada num cada vez maior cemitério artístico, e ainda bem.

É bom saber que alguém, em pleno disco de estreia, tem a coragem de escrever uma canção com o título "Bill Gates Must Die". Sem matéria sustentada para confirmar se as acções legais interpostas pela Microsoft, anunciadas e desmentidas por Vanderslice, chegaram a acontecer, não podemos reprimir um sorriso pela audácia. Isto, apesar de este processador de texto ser do inimigo e o browser que o caro leitor utiliza para visualizar esta página ser, com grande margem de certeza, o Internet Explorer. Enfim, incoerências... Quem as não tem? Mas situacões destas, pertençam elas à ordem da realidade ou do imaginário, geram sempre um bruáa positivo. Como menos por menos dá mais, há sempre a hipótese de alguém ouvir o disco depois de ler o frou frou nas páginas da Pitchfork.

Ao quarto parto (quase um disco por ano desde 2000), John Vanderslice continua evasivo de faixa para faixa, vertendo a sua narrativa até à última gota quando termina a canção. Há nele uma economia de meios, um fascínio pelo conto com um pequeno gancho na vida quotidiana, mas sem derramar sangue nem suor desnecessários. Em temas como "Wild Strawberries" e "My Family Tree" chega a estancar o fluxo para não romper a aorta. Compõe música de sótão, com vista sobre a cidade adormecida e plena de sombras fantasmagóricas (conferir em "Lunar Landscapes").

Há momentos em que Vanderslice parece ter adormecido noites seguidas ao som de (Smog). E daí talvez não. É sempre inútil apontar em certas direcções que os artistas, por vezes, até desconhecem. Mas aqui não parece ser o caso. E, mais do que ser sanguessuga das capacidades oratórias de Bill Callahan, o músico parece disposto a sentar-se à mesa e ficar a conversar a tarde toda, como aluno aplicado num encontro informal. A brutalidade lírica - a agulha temática vai do junkie sem poiso à pólvora das armas - é acompanhada de uma execução competente das peles e das cordas. O baixo envolve mas não prende como teia de aranha, sustenta precariamente o ouvinte nas malhas das coisas frágeis, dos arranjos minimais.

Nas composicões à base de cafeína - a cafeína é uma invenção das cidades, na provincia toma-se café, simplesmente -, faz lembrar um pouco Richard Youngs. E isto é perigoso para quem não conhece nem um nem outro, porque Youngs é mestre e Vanderslice é, quando muito, aprendiz. Mas dá para facilitar os trocos. É como passear numa rua escandinava e ouvir uma conversa em português, ainda que com sotaque carioca. O vernáculo soa distante e desajustado mas é sempre agradável. Não teremos a nossa sintaxe e semântica de volta até pisarmos solo lusitano, mas dá para sacrificar o bezerro da saudade.


Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
23/09/2004