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2 Chamadas Não Atendidas 2 Chamadas Não Atendidas

2020
Cultlabel.pt


Senhores, eu não percebo um caralho de música. Sim, ganho a vida a escrever sobre música, mas não significa que a entenda; não vos poderei explicar o tipo de construções melódicas presentes em 2 Chamadas Não Atendidas, as escalas utilizadas pelos intérpretes, de que forma os instrumentos dialogam e interagem entre si. Pior ainda, 2 Chamadas Não Atendidas é um disco que mereceria, da parte de quem o escuta e sobre ele escreve, um grau redobrado de atenção e conhecimento - a primeira existe, naturalmente, porque gosto de música, mas a segunda é algo que só se obtém em cursos académicos que não tirei porque é muito mais divertido viver sendo uma fraude jornalística.

À partida, estaria impedido de escrever uma linha que fosse sobre este álbum para 1) não passar vergonhas no círculo dos conhecedores e 2) porque sou um gajo dos subúrbios que curte é electricidade e violência e rock n' roll e, de vez em quando, ouvir os grupos de putos brancos que passam na rua a ouvir trap aos berros em colunas de 20€ compradas na BOX do Auchan local. 2 Chamadas Não Atendidas é muito mais que esse frémito imediato, é algo com o qual não me identifico social e culturalmente. Ou algo com o qual não me deveria identificar, de acordo com os estereótipos. Por não me identificar, não sei o que tecer sobre ele - mesmo que ele me tenha chegado, como tantos outros discos, via um pedido simpático de escuta por parte dos seus autores.

(Já agora, 3): Não fazia puto de ideia do que era um bombardino. Vivendo e aprendendo.)

Por outro lado, já escrevi imensas vezes sobre jazz e música experimental e diversas outras tonalidades de um campo mais "intelectual", e já me disseram algumas vezes que não é preciso ter um doutoramento para gostar ou perceber alguma coisa. E provavelmente dir-me-ão - com toda a razão que possam ter - que 2 Chamadas Não Atendidas não é um disco académico (e que raio é isso, sequer?), mas sim um disco popular, congeminado a partir de vivências e humores tradicionais. Essas pessoas entendem este disco melhor que eu, já que a única coisa que me ocorre é a expressão que a minha avó utiliza para descrever tudo o que seja sacro, clássico ou fado: "música bonita" (por oposição a todas as outras linguagens, do rock ao techno, do metal ao hip-hop à folk americanizada, que são descritas como "música de colar merda na parede").

Não, não é fácil descrever este disco nem segundo os clichés habituais dos críticos a quem pagam pouco para escrever lixo: é jazz? É música clássica? É música de filmes? Talvez esta última esteja mais próxima da verdade, já que os temas presentes em 2 Chamadas Não Atendidas se vão desfiando como uma narrativa cinematográfica em que as imagens são tudo aquilo em que pensamos ao escutá-lo (um bobo a dançar alegremente, por exemplo, ali a meio de "Suite do Caos"). Um filme que, ao contrário das grandes produções hollywoodescas, não se deita fora como um balde vazio de pipocas caramelizadas. Seja como for, o próprio André Louro - um dos elementos que compõem este trio - afirmou ao Ípsilon ser «um analfabeto musical», pelo que se ele pode, eu também posso. E posso rematar tudo isto com: este álbum é bem mais que "Porreiro, Pá".


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
03/07/2020