É uma das grandes figuras nacionais da música improvisada do século XXI. O baterista Gabriel Ferrandini afirmou-se como músico notável ao longo da última década, membro fulcral de dois grupos de improvisação livre que têm atravessado fronteiras: RED Trio e Rodrigo Amado Motion Trio. Em paralelo tem desenvolvido trabalho a solo (apresentou no Maria Matos o espectáculo “Tudo Bumbo”), mantém um duo estável com o saxofonista Pedro Sousa (PeterGabriel) e participa em diversas formações, nacionais e internacionais.
Ferrandini tem colaborado com músicos como Evan Parker, Peter Evans, Alexander Von Schlippenbach, Axel Dörner, John Butcher ou Nate Wooley (versão resumida do CV). E acaba agora de editar o excelente disco “Disquiet”, em duo com o saxofonista russo Ilia Belorukov (edição Clean Feed). Além da improvisação, Ferrandini explora ainda projetos de rock mais livre, tocou e gravou com Thurston Moore (Sonic Youth) e Alex Zhang Hungtai (Dirty Beaches) e a formação mais recente de CAVEIRA.
Ferrandini foi um dos responsáveis, com Pedro Sousa, pela programação do bar Irreal em Lisboa entre Outubro de 2018 e Março de 2019. Neste período o espaço apresentou um programa rico com concertos e encontros improváveis. Um dos momentos mais memoráveis foi um concerto que juntou um trio de improvisação livre (Ferrandini, Rodrigo Pinheiro e Miguel Mira) com o saxofonista Ricardo Toscano – como consequência o quarteto foi convidado a tocar no festival Jazz em Agosto e pouco depois a dupla Toscano/Ferrandini apresentou-se ao vivo na Galeria ZDB. O baterista vem construindo um percurso sólido com inúmeras ramificações, e sem medo do risco, mas ainda não tinha editado um disco assinado apenas com o seu nome na capa.
Durante o ano de 2016 a Galeria ZDB promoveu a residência artística “Volúpia das Cinzas” com Ferrandini. A residência teve o objectivo de proporcionar condições para que Ferrandini desenvolvesse composições, que foram sendo trabalhadas e apresentadas ao vivo – num total de seis concertos – com os parceiros habituais Hernâni Faustino (contrabaixo) e Pedro Sousa (saxofone tenor). O trabalho de composição, interpretação e refinamento acabou por resultar neste disco que é agora editado, “Volúpias”, o seu primeiro registo em nome próprio.
Assinando todas as composições (e arranjos de dois temas de Ondness/Bruno Silva) Ferrandini apresenta aqui uma espécie de free jazz de temas curtos. No mundo da improvisação livre os concertos e discos mostram explorar peças longas, com os músicos a explorarem ideias ao longo de dez, quinze, vinte, trinta minutos. Além de trabalhar composições originais, Ferrandini quis mostrar uma música improvisada mais acessível, temas mais breves.
Para chegar ao objectivo o líder e compositor conduziu o trio (todos músicos habituados a trabalhar em improvisação sem limite) para abreviar, condensar o processo, focar ideias. As músicas deste disco têm assim a duração curta (dois, três, cinco minutos) e cada tema tem como título nomes de ruas de Lisboa, que fazem parte da geografia pessoal de Ferrandini: da Rua Nova da Piedade à Rua da Barroca, o itinerário que o baterista percorreu desde a sua casa até à ZDB.
Em cada tema o processo é trabalhado de forma dinâmica: os motivos melódicos são apresentados, abre-se espaço para a liberdade da improvisação, o trio explora ideias. O saxofone de Sousa é aqui preciso, mas contido, sem o fogo de outros contextos; o contrabaixo de Faustino não se fica pela marcação rítmica, acrescenta ideias; e Ferrandini pauta o ritmo, exibindo sempre curiosidade, mas sem explosão. Curto, conciso, focado. Aqui não encontramos as estratégias típicas do free – tensão, crescendos e explosão – aqui a música é controlada, mais subtil, por vezes até dengosa (ouça-se “Rua de O Século”). O único momento onde encontramos os músicos na sua zona de conforto é na última faixa, “Rua da Barroca”, tema com a duração de dez minutos onde há uma exploração mais desregrada.
A improvisação livre é muitas vezes olhada de lado, vista como música estranha, difícil, e a longa duração dos temas não facilita. Poderá esta estratégia de temas curtos fazer a música improvisada chegar a mais gente, soar mais acessível? Não sabemos, mas a ideia valia o investimento. Independentemente da resposta, importa salientar o mais relevante: o resultado artístico, pela originalidade, justifica plenamente o aplauso. Ferrandini era um baterista explosivo, agora ousou criar uma música nova, que sai da caixa, é original e desafiante. Este disco fica para a história, é desde já um dos grandes discos do ano, em Portugal e em qualquer lugar do mundo.