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Flying Lotus Flagrama

2019
Warp


A propósito de Assume Form de James Blake, falava da marca autoral, a singular impressão de um músico sobre um género – isto numa era em que muitos se convencem, cada vez mais, que nada mais há a inventar. Defendo – hoje definitivamente com uma maturidade que não tinha há dez anos, ainda menos há vinte – que desde sempre (a qualquer artifício a que o Homem se dedique) é tudo uma questão de intervenção: absorver a herança e, com espírito, com destreza, projectá-la numa nova direcção.

Qualquer um pode pegar no velho e transformá-lo em novo. Raro os que conseguem transformá-lo em ouro. Soma simpatias perante o melómano quem sabe investir, realmente investir, dia após dia – nem que seja um mero palmo por dia. A pop sempre viveu do instante. Hoje é absurdo – nada é feito para durar mais que vinte e quatro horas. Para quem devora tudo de uma vez, sôfregos, tudo é igual, tudo sabe ao mesmo; tudo está inventado.

Steven Ellison ou Will Bevan ou Kenny Dixon Jr. ou Richard D. James são, cada um no seu quadrante, singularidades. Eles começaram a experimentar por carolice e a brincadeira ganhou vida própria. Muitos mais caberão nesta categoria; sim, até James Blake – apesar de acreditar que entrou num sonambulismo criativo. Felizmente, à sombra da pilha de lixo pop, há Flying Lotus, Burial, Moodymann, Aphex Twin.

O som de Flying Lotus está mais que estabelecido. Começou a fazer umas graçolas sonoras para a exuberância gráfica dos separadores do Adult Swim. Marcou. Ficou. Muitos dos temas que produz raramente se estendem além dos dois minutos. É assim que articula. Já lhe conhecemos os maneirismos – a idiossincrasia, a retórica tão rápida quanto certeira. Não que se aborreça com as suas ideias, precipitadamente saltando para próxima – como miúdo hiperactivo que quer fazer tudo ao mesmo tempo, acabando tudo em esboços esquizofrénicos –, Ellison condensa, sabe condensar, uma boa ideia num instante sonoro. Flash. Aconteceu. Ficou.

Pessoalmente, é difícil dizer a esta fase qual o álbum seminal. Apesar de estabelecido, o som continua enigmático. Digital jazz. Espiritual jazz. Jazz cósmico. Sun-Ra. Miles. Dilla. Madlib. Ellison é tudo. E é ele mesmo. Sempre enviesado. Um tema é, amiúde, complicado de perceber à primeira. Um álbum é, tradicionalmente, um desafio de semanas, ou meses. Um quebra-cabeças para o melómano: um jogo audaz que desafia todas as divindades do jazz ao funk, do hip-hop ao techno.

A verdade é que Ellison continua na sua, tal não significando que esteja na mesma. Cosmogramma, You’re Dead! e este Flagrama, que diferenças radicais? São uma história contínua – para já uma exuberante trilogia! Palmo a palmo, acto de depuramento. Tudo no lugar. Tudo alinhado. Zodiac Shit! A Terra e o Cosmos. Técnica e espiritualidade. Flying Lotus repete-se para inventar um pouco mais – prova disso, cada álbum ser sempre de demorada digestão. No fim, Flagrama nunca provoca azia. Felizmente, só delírios – de tão EXCELENTE.


Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com
05/07/2019