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Romanowski Steady Rocking

2003
Future Primitive Sound


Vamos lá ver uma coisa. Isto de falar sobre música é mais do que inchar de orgulho quando a nossa banda preferida tem um disco bom p'ra diabo. Escrever sobre arte - e sobre música - é uma boa forma de minorar os instintos homicidas que toda a gente tem. E estamos a falar de toda a hierarquia social, do insuspeito presbítero ao rufia da província.

Mais: quem nunca temeu pela sua integridade física, mental, ou qualquer outra, não sabe, em boa verdade, o que é a vida. Pelo que a música serve de cabide: é nela que depositamos alguma da empatia com um mundo cão e suburbano, é com ela que largamos muita da guita que recebemos todos os meses. E a cultura é uma cena interessante. As páginas dos jornais são galgadas à pressa para encontrar a resenha ao disco daquele gajo que ouvimos na rádio ou daquela miúda que tem a voz parecida ao canto dos rouxinóis das Arábias.

E, neste contexto, os estudantes universitários dão um case study de fundo sociológico. Aqueles que não jogam à bola e passam o tempo enfiados em apartamentos da baixa, arrendados a pessoas seculares, preços reduzidos, a loiça acumulada de muitos dias, manifestos, manifestações, discos em segunda mão, restos de comida e lixo televisivo.

Tudo isto para dizer que é possível ouvir reggae e ler McLuhan e Friedrich Engels. Esqueçam a onda rastafari que enche a Avenida de Berna e outras. Pouco importa se é ou não cool bater novos recordes de meses seguidos sem lavar o cabelo, sobretudo quando se tem em mãos o grande, grande Romanowski. De Zurique, na sua Suíça natal, este DJ não trouxe grande coisa. Estabelecido em San Francisco, é ao turntablism e ao reggae que vai buscar grande parte da sua inspiração.

Aí partilhou o palco com gente como o DJ Shadow (querem melhor?) e a Thievery Corporation. Mas ao primeiro capítulo, Romanowski alarga a sua paleta de cores e dá um pulo conceptual à Jamaica de Bob Marley, essa divindade dopada do Olimpo de qualquer FM rasca. Steady Rocking é abstraccionismo chill-out, carregadinho de névoa, muita graça e alguma erva. É um som cheio, que manda às malvas o velhinho "get up, stand up". A provar que, para se lutar pelos direitos, é preciso ter alguma parte do cérebro a trabalhar sem a ajuda de psicotrópicos ou derivados.

E o disco abre com uma querela tipicamente urbanóide com um atendedor de chamadas para, a seguir, descarregar "Flat Picker", um número bonitinho a usar como digestivo, uma perolazinha ambient para chamar à atenção logo à segunda faixa. Mas o mais interessante é perceber Steady Rocking como um organismo circular: a faixa 7, "Romjack Steady", recupera e engrandece a anterior; há uma reciclagem dub de "Speaking Of"; e o disco fecha com uma versão alternativa de "Chalice".

Editado pela impressionante Future Primitive Sound, uma casa que promove a música - do hip-hop à electrónica -, as artes visuais e a spoken word, o disco único de Romanowski é um calhau no charco, uma bofetada no reggae de algibeira. Mas o melhor é não falar muito alto ou o coro de críticas dos sobrinhos do Marley vai jorrar como sangue palestiniano. É que a verdade dói para burro.


Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
27/08/2004