No início era o Rock Sem Merdas, termo de carácter rockista que visava, grosso modo, definir aquilo a que soavam os Glockenwise "puros" e cientes do seu papel e identidade no vasto mundo do rock n' roll - que era, convenhamos, absolutamente nenhum. Era o Rock Sem Merdas daquelas bandas de putos que decidem, por graça e obra dos irmãos mais velhos, dos amigos, dos discos e da MTV quando era fixe e de uma imensa sensação de apatia causada pela vivência numa cidade pequena e culturalmente suburbana, começar uma banda como uma forma de escape. Era Sem Merdas porque era apenas aquilo que se propunha a ser: guitarras a ranger, baixos gostosos, baterias frenéticas, gritos vindos do punk dos anos 70 e 80 e do garage rock dos anos 60 e dos milhares de poetas e filósofos e membros da classe operária fartos da sua condição social, humana, amorosa, o que quer que fosse (num grito cabe tudo isto e muito mais). Era Sem Merdas porque quem o fazia, e continua a fazer, se estava pouco borrifando para o que deles se pudesse pensar.
(A cena disto é um gajo divertir-se, imortais palavras pronunciadas pouco antes dos Glockenwise tomarem conta do palco do Super Bock Super Rock, em 2011.)
Mas o tempo, o tempo estúpido e que tudo devora à sua passagem, tinha outros planos para o Rock dos Glockenwise. Obrigou-os a crescer, a procurar outras pastagens e sonoridades, a começar a cantar coisas que contivessem dentro de si algum tipo de significado (o significado, quando se é jovem, passa sobretudo por curtir a crista de uma qualquer onda). Obrigou-os a tornarem-se adultos e a perceber que a "My Generation" ou o Pela Estrada Fora só fazem sentido até se entrar para a faculdade; depois isso, são apenas retratos patéticos e cringey de um período que, contrariamente ao que se possa pensar, não irá durar eternamente; um dia acorda-se de ressaca e, pumba!, percebemos que as palavras do imortal Roger Murtaugh são a coisa mais verdadeira que iremos soletrar até à morte.
(I'm too old for this shit.)
Vai daí, os Glockenwise, que eram jovens mas não eram estúpidos ou sequer conservadores (e há tantos jovens que são estúpidos e conservadores na sua rebeldia) começaram a mandar foder a peer pressure e a admitir que sim, nós gostamos de pop, gostamos de melodias, gostamos de dançar, gostamos de dar beijinhos antes de ir para a cama, gostamos de fazer canções e não apenas barulho - e começaram a destapar o véu com "Napoleon", que ainda mantinha essa energia Sem Merdas, mas que já era mais alguma coisa, era um pseudo-ataque aos topes e às cabeças de outros jovens fartos de emular algo que na verdade não eram - e que apenas vestiram para se sentirem presentes no deserto que é o mundo.
De lá para cá, lançaram ainda Heat, esconderam-se um bocado - ocupados com outros projectos também eles mais crescidos - e regressam, em 2018, de cara lavada, onde as cicatrizes do acne já não são perceptíveis e os livros de Foucault substituíram a biografia dos Sex Pistols (que também eram filósofos à sua maneira; só que já não fazem sentido a não ser por razões nostálgicas). E regressam com a força de quem percebe que a língua inglesa não precisa de ser tão franca quanto isso; que é possível fazer grandes canções sem ser em estrangeiro, que é possível mandar grandes riffs afinando a guitarra em Ré e não em D, que é possível encarar o mundo vibrando a glote ao ritmo luso.
Plástico é o nome do novo álbum dos Glockenwise e é também o melhor álbum que já fizeram.
Mas porque é que tudo isto soa tão estranho?
Voltemos duas linhas trás: a veracidade desta frase parece inequívoca: Plástico é o nome do novo álbum dos Glockenwise e é também o melhor álbum que já fizeram, porque é um álbum em que puseram de lado essa ideia de que a cena disto é um gajo divertir-se; isso conta, mas não conta tanto quanto a vontade de fazer algo mais, o egocentrismo (sem conotação negativa) que é ter a consciência de que é possível colocar no mundo uma obra de arte que de facto nos orgulhe, sem pensar nos finos à pala a que iremos ter direito quando a apresentarmos por esses palcos fora. É um álbum onde a banda percebeu o seu potencial máximo no que toca a fazer canções - coisas passíveis de serem trauteadas por milhares e milhares, de encher salas, de ficarem para a história da música pop no seu todo.
E no entanto soa estranho apesar de se mover.
Talvez a resposta esteja no título: Plástico, como algo artificial, industrializado, avesso à autenticidade que, enquanto rockistas, tanto procuramos e exponenciamos.
Quer isto dizer que os Glockenwise deixaram de ser autênticos? Não, longe disso - nem faria sentido que assim fosse. Mas vejo-me (e perdoem o meu egocentrismo) forçado a vestir a capa de um teórico da conspiração de forma a tentar explicar esta mudança abrupta na sua sonoridade. É que a mesma ladainha se repete há anos e anos: o Rock Português, o Rock Cantado em Português, como sinónimo de algo glorioso e ao qual nos devemos agarrar.
(Os senhores já vão ver o que é meterem-se com uma nação de poetas)
Leia-se a entrevista dos Glockenwise ao Ípsilon: o uso do português não foi uma "estratégia de mercado". Bem, também não era nisso em que estava a pensar; a banda podia cantar em português, inglês, romeno, urdu ou numa língua inventada à la Sigur Rós que dificilmente conseguiria competir com a Mariza, o António Zambujo ou os D.A.M.A., que evidentemente venderiam e continuarão a vender muito mais que três tipos que fazem e que gostam de fazer rock n' roll.
Mas também li a entrevista dos Glockenwise ao Ípsilon e notei isto:
"Quanto mais narcisismo passou a existir e quantas mais oportunidades temos de demonstrar nas redes sociais as nossas características pessoais, mais ficamos parecidos uns com os outros."
É uma crítica do Nuno, claro, que também deixou algumas palavras em relação ao pós-modernismo e à ânsia de querer tanto ser "eu" e deixar tanto de ser "nós". Mas parece da mesma forma uma deixa, uma palavra-passe, uma pista em que os Sherlock Holmes da crítica musical poderão pegar para descobrir, afinal, o que motivou os Glockenwise a passar a cantar em português. A Navalha de Occam será talvez a resposta mais sensata: cantam em português porque querem / porque lhes faz sentido fazê-lo agora. Ou então há algo aqui escondido que, consciente ou inconscientemente, entrou no processo criativo dos Glockenwise e deu origem a Plástico.
É que este é um disco cínico: os versos indicam isso mesmo, referindo tanto "o país-festival" onde "podes falar dentro da bolha que ninguém leva a mal" como "a crítica em Lisboa" que "assobia para o lado". É um ataque feroz ao centralismo que se propaga como um veneno por entre todos os cantos da sociedade, onde toda a música - e fale-se, neste caso concreto, da música - que não seja feita na capital ou por gente da capital não terá inevitavelmente o mesmo impacto mediático que as muitas coisas boas ou essenciais que se vão fazendo acima do Tejo. E eles sabem bem o quão se sofre com o centralismo: afinal de contas, são de Barcelos.
Quer isto dizer que passaram a cantar em português com vista a entrar dentro da bolha? Não - "o uso do português não foi uma estratégia de mercado", certo?
A primeira vez que ouvi "Moderno", o single de avanço, fiquei de pé atrás; por causa do português, naturalmente, mas também porque não discerni qualquer fio condutor entre isto que aqui se ouve e "Scumbag", que continua a ser um enorme malhão rock n' roll. Soava - e eles vão matar-me por dizer isto, ou então vão rir-se - a uma banda da capital, sem querer apontar nomes específicos. É a mesma sonoridade na qual antigos alunos da António Arroio ou do Liceu Francês apostam no preciso momento em que se viram para a música e para a escrita de canções. Não quer isto dizer que não seja distinta: apenas que há traços similares com tudo aquilo que se tem vindo a fazer e que tem vindo a ser empolado, com mais ou menos justiça.
Tão fiquei de pé atrás que de imediato recebo esta mensagem do Nuninho:
Pela notícia do Bodyspace adivinho que não tenhas gostado muito da música nova eheh
Sim, tudo bem, mas nestas coisas há que se ser diplomático: Vou esperar pelo disco para me pronunciar, o meu primeiro julgamento sobre o que quer que seja costuma estar errado, todo esse tipo de desculpas. (E agora não consigo deixar de ouvir o disco; só o apanhei no Spotify, mas já o ouvi umas seis ou sete vezes seguidas.)
Agora que dá para incluir "Moderno" no pacote completo que é Plástico, essa opinião estende-se às demais faixas do álbum: este é um disco lisboeta. Soa a Lisboa, fala de Lisboa, até o sotaque cantado é o de Lisboa. O que tira razão à descrição que dele é feita no Bandcamp: "confirma a inteligência e a capacidade lírica e técnica de deixar para trás três discos de originais em inglês, e investir na língua portuguesa como forma de expressão de um discurso pós-moderno, reflectido, crítico e descentralizado". Ora, "descentralizado" é tudo o que ele aparenta não ser.
Mas talvez o seja.
Porque o disco é cínico. E é Plástico. E assume-se como crítico. E os Glockenwise ainda guardam dentro de si uma clara atitude punk. Que melhor forma teriam, então, para fazer passar a mensagem, do que infiltrarem-se nas mais altas esferas da música cantada em português, através de um disco-Cavalo-de-Tróia? Imagino a atitude: vamos mostrar a estes betos de Lisboa que conseguimos fazer o que eles fazem, mas muito melhor, e com mais sentido, enquanto o sangue minhoto (que também é o meu) lhes ferve. E, desse modo, é descentralizado - porque quem já lá vive não pode "invadir" a cidade.
Olhando a partir de fora, os Glockenwise reescreveram o código, numa acção que tem tanto de subversivo como de génio. E o resultado é este: vestiram as roupas de quem querem criticar numa sátira fabulosa, que ao mesmo tempo promete revolucionar a forma como se faz pop/rock em Portugal, sem que seja necessário estar constantemente a estudar a forma como o Johnny Marr pega na guitarra - e há muito dele, aqui, e muito que ele invejaria, também. Aparentam ter-se tornado Plástico, porque é maleável, porque a sua forma não deixa antever o que se encontra lá dentro.
(É tão fácil ver que é só plástico)
Naturalmente, todas estas suposições - e não imposições - estão erradas e, mesmo que haja uma ínfima possibilidade de estarem certas, a verdade continua a ser apenas uma: Plástico é um disco do caralho, cínico ou não, situacionista ou não, subversivo ou não, descentralizado ou não. É um disco passível de acabar com todos os "ses" ou "mas", porque a bitola agora - pelo menos no que toca ao pop/rock - vai ter que passar a ser esta:
"Sim, mas de 0 a Plástico, quanto é que vale?"
...E essa é a melhor coisa que nos poderia - aos críticos, pseudo-críticos e simples melómanos - ter acontecido