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Cibelle Cibelle

2003


Quando, numa qualquer movimentada noite de SĂŁo Paulo, acabou em palco com um homem alto e misterioso, Cibelle sabia que tinha encontrado tudo aquilo que queria. Esse homem era Suba, o produtor nascido na JugoslĂĄvia que se encontrava a trabalhar em algum material para ser editado. O enlace musical entre os dois mĂșsicos resultou em SĂŁo Paulo Confessions, um dos mais inovadores discos da mĂșsica electrĂłnica brasileira da dĂ©cada de noventa, onde Cibelle oferece a sua voz em temas como “Tantos Desejos”, “Sereia” ou “Felicidade”. Tragicamente, Suba viria a falecer num incĂȘndio no dia 2 de Novembro de 1999, e Ă© precisamente a ele que Ă© dedicado este primeiro disco de Cibelle, a menina camaleĂŁo.

Quatro anos apĂłs o desaparecimento de Suba, Cibelle reflecte sobremaneira a influĂȘncia musical e pessoal e todos os ensinamentos que Suba transmitiu. Cibelle, que sempre esteve rodeada por poesia, televisĂŁo, rĂĄdio e representação, escreveu quase todas as mĂșsicas e letras – algumas foram escritas antes de conhecer Suba, outras apareceram precisamente na semana de gravação do disco -, que sĂŁo cantadas ora em PortuguĂȘs, ora em InglĂȘs, ora misturando ambos os idiomas de forma harmoniosa. Cibelle, que assim como Bebel Gilberto ou Nina Miranda trabalha a partir da Europa, fez-se reunir de um vasto leque de mĂșsicos oriundos de vĂĄrios pontos do planeta: os percussionistas JoĂŁo Parahyba (Trio MocotĂł) e Eder Rocha (Mestre Ambosio), o pianista cubano Pepe Cisneros, Ross, o veterano Johnny Alf, Ross Godfrey (Morcheeba), o guitarrista e compositor Ari Moraes, o rapper Xis, o guitarrista e baixista Richard Harrison e os baixistas Serginho Carvalho e Robinho, entre outros mĂșsicos. Cibelle contou tambĂ©m com a ajuda do produtor Apollo 9, assim como com a de Chris Harrison e Pete Norris (Morcheeba), que misturaram o disco em Londres.

Cibelle Ă©, pois, resultado da confluĂȘncia de vĂĄrias sonoridades. Dos ambientes tranquilos do jazz Ă  exaltação do samba, passando como nĂŁo poderia deixar de ser pela mĂșsica electrĂłnica e pela bossa nova, Cibelle Ă© um disco diversificado e refrescante. A voz de Cibelle Ă© divertida, suave como uma brisa de VerĂŁo, e muitas das vezes profundamente sensual. Logo em “Deixa”, a canção que abre o disco, Ă© possĂ­vel confirmar tudo isso. “Deixa” Ă© um colorido e luminoso pedido Ă  acalmia, Ă  plenitude: “Deixa ser cor / De azul de ser vocĂȘ / Deixa o tempo parar / Deixa ser cor / De azul de ser vocĂȘ / Deixa o tempo passar”. “SĂł sei viver no Samba” começa com a percussĂŁo espaçada, e depois segue com uma guitarra acĂșstica de som latinizado. Aqui, Cibelle afirma a sua paixĂŁo pelo samba, seja ele “samba de roda, ou batucada, samba de noite no arada, samba que nunca vai ter fim”.

“Hate” Ă© tropical, traz areia nos pĂ©s e um dilema para a cabeça de Cibelle: “I love you so much when you're near / Yet I hate you so bad when you make love at me / I hate you so bad when you're near / 'Cause I know you wanna say things but you never do / I love you so much when you're inside me / Yet I hate you so bad when your eyes I can't see”. É uma irĂłnica visĂŁo do amor, dos desencontros e contrariedades que pode provocar. “Waiting”, por incrĂ­vel que possa parecer nasceu de uma ida a um supermercado. Cibelle gravou o som de uma mĂĄquina registadora e de um frigorifico e comunicou a Apollo 9 que queria utilizar esses sons na construção da mĂșsica. A esses samples juntam-se a hipnotizante linha de baixo, a percussĂŁo partida em vĂĄrios pedaços, a voz purĂ­ssima de Cibelle e toda uma camada ambiental que confere a “Waiting” um tom descontraĂ­do, quase chill-out. “No prego” Ă© uma curiosa mistura de batidas latinas, um trombone, guitarras e jogos de palavras, e “I’ll be” Ă© uma canção de promessas, de intençÔes: “I’ll let you live inside of me / Let me give you a daughter / Feel life through my skin / See the world through my eyes”. ConstrĂłi-se calmamente, por entre linhas de baixo vagarosas e teclados mornos.

“Train” Ă© misteriosa, inquieta, sensual. Cibelle afirma estar sentada num comboio que a leva para nenhures, e ainda tem tempo para dar um ar de sua graça na lĂ­ngua francesa. “InĂștil paisagem”, escrita originalmente por Antonio Carlos Jobim, aparece aqui transformada pela voz doce de Cibelle e pelo tom enrouquecido de Johnny Alf, numa versĂŁo sonhadora e impregnada de secretismo. Quando Cibelle deixa sair “Mas pra quĂȘ, pra quĂȘ tanto cĂ©u, pra quĂȘ tanto mar, pra quĂȘ / De que serve esta onda que quebra e o vento da tarde / De que serve a tarde, inĂștil paisagem”, soltam-se os pĂĄssaros, o sol toca ao de leve o mar que, jĂĄ escurecido pela proximidade da noite, reflecte uma vivĂȘncia, ou duas. “Um sĂł segundo” Ă© uma canção electrĂłnica, de batidas fortes, estonteantemente melĂłdica e ambiental. “Pequenos olhos”, a canção que fecha o disco, Ă© despida de grande instrumentação, e desenvolve-se em tons jazz.

Para alguĂ©m que tem como principais fontes inspiradoras nomes tĂŁo distintos como Nina Simone, Tom Jobim, Björk, Jackson do Pandeiro, 4hero, Ella Fitzgerald e Matmos, Cibelle acaba por ser uma aprazĂ­vel combinação de vĂĄrios estilos musicais, vĂĄrios tons e vĂĄrias cores. Por vezes Ă© contemplativo, por vezes Ă© gracioso, orgĂąnico - Cibelle afirma que nĂŁo consegue fazer mĂșsica de outra forma que nĂŁo seja a orgĂąnica - ou atĂ© mesmo humorado. mas Ă© acima de tudo uma grande estreia a solo de uma voz que nĂŁo podia ficar simplesmente guardada numa caixa para a posteridade.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
18/07/2004