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Pau Torres My Wrong Mood

2004
Testing Ground


Em 1913, Luigi Russolo, autor dos manifestos “Art of Noises” e “Musica Futurista “ dizia: “a variedade de ruídos é infinita. Se hoje, que possuímos, quem sabe, umas mil máquinas distintas, podemos diferenciar mil ruídos diversos, amanhã, quando se multiplicarem as movas máquinas, poderemos distinguir dez, vinte ou trinta mil ruídos dispares, não para serem simplesmente imitados, mas sim para combiná-los segundo a nossa fantasia”. Tudo isto parece ainda mais óbvio se pensarmos na música experimental e nos “fanáticos” do sampling e se transpusermos o pensamento de Russolo para os dias de hoje. Há coisas que nunca mudam.

Após a dissolução dos Le Diablo Mariachi, a antiga banda de Pau Torres, o músico espanhol seguiu uma carreira a solo com o lançamento de Songs for Nula, um mini-ábum, e The Anti-song, cuja edição foi limitada a duzentas cópias. Ainda e sempre pela Testing Ground, o novo trabalho de Pau Torres, My Wrong Mood, é um audaz exercício musical que procura fundir a música electrónica com o jazz, seguindo a cultura do “cut and paste”. Em todo o disco, saxofones, pianos, guitarras, tubas, trompetes, clarinetes, flautas ou até mesmo um acordeão - Pau Torres contou com colaboradores muito talentosos neste disco - rompem por entre a electrónica minimal, criando texturas densas e misteriosas capazes de evocar um qualquer cabaret fumarento em plena Nova Iorque. Ouvem-se passos, pequenos passos em direcção a uma cortina escura onde esbarram fios de fumo sem que ninguém repare. O mistério esculpe contexturas rumo à perpetuação.

Uma interpretação de “Sadness”, um original de Ornette Coleman, vestida por ramificações primorosas de distinta electrónica, abre o disco. Escuta-se o gotejar num beco ermo, ou num esgoto carcomido pelas ratazanas que se escondem pela noite dentro. Cá em cima, pé ante pé, alguém percorre rua após rua, em silêncio, sem nunca mostrar a face. Dissolve-se o mistério numa poça de água e no reflexo que ela produz. Cerimónia secreta, culto macabro, esse o caminhar errante pela escuridão, como se já não se esperasse nada da noite. Como se a solidão fosse omissão, e não uma escolha. Recupera-se o som da chuva, os ruídos do mar, o tilintar das latas e outros objectos metálicos. Tudo é musicável, desde que observável. Em termos sonoros, My Wrong Mood é um tapete remendado por várias texturas: umas mais agrestes, outras mais suaves, mas todas elas dramáticas. Justiça seja feita a quem as sente.

Noutros casos, como em “Lot Old Radio”, é o som da guitarra espanhola que se sobrepõe à rede electrónica especialmente montada para o tema. O som seco e refulgente do instrumento acústico quebra com as tonalidades espaciais e bizarras e deixa transparecer uma teatralidade e dramatismo tocantes. Em “The Anti-song”, a percussão, esparsa e solta, derrama sensualidade e secretismo. Ouvem-se vozes sampladas, embates metálicos, fios soltos de electricidade que, numa casa húmida, batem entre si, provocando luminosos choques eléctricos; ouve-se um pianista louco e um saxofonista desvairado; fios, fios de loucura. My Wrong Mood é um disco que mantém a mesma toada do inicio ao fim, e fá-lo de forma coerente e fluente. A prova disso é “Sqawmp Banjo”, tema final cuja duração é superior a onze minutos e onde a tensão, e a justaposição de instrumentos é mais forte do que nunca. Uma guitarra desenha um horizonte cinzento, o saxofone em improviso complementa a paisagem e introduz-lhe relâmpagos, trovoada intensa. Por fim, a electrónica vai desfalecendo fechando o disco de forma subtil. Um homem, sério, acende um cigarro e atira um fósforo para o chão, esmagando-o com delicadeza antes de desaparecer na noite. Nunca antes o silêncio parecera tão pacífico. Os tempos renderam-se às máquinas, e os humanos também. A fantasia está criada.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
26/06/2004