bodyspace.net


Chuck Berry Chuck

2017


Elvis Presley foi o Rei. Porque era branco, e porque conseguiu convencer a indústria a vender em massa um produto que era decididamente não-branco, de uma forma como nenhum outro havia conseguido até então, subsequentemente abrindo caminho à popularização, internacionalização e eternização do rock n' roll, e do seu estatuto enquanto bomba-relógio prestes a rebentar nos braços de um qualquer adolescente menos dado a questões de autoridade (claro que outros factores, nomeadamente o facto de ter a voz e os movimentos certos, aliados a dúzias de excelentes canções, também contribuíram).

Bill Haley foi o Pioneiro. Os seus Comets levaram o que era a palavra rock n' roll à juventude dos anos 50 e fizeram-na dançar como nenhuma outra até então – o jazz era mais underground e tanto Sinatra como Crosby só emocionavam a alma, não giravam as ancas. A sua versão de "Rock Around The Clock" conferiu ao rock n' roll aquilo que faltava para ser realmente imenso: má fama, a sedução da violência (a sua utilização em Sementes De Violência levou dúzias de adolescentes aos cinemas, as sessões frequentemente descambando em motins).

Robert Johnson foi o Mito. Porque nunca gozou de qualquer popularidade enquanto foi vivo; o mundo só despertou para o seu génio depois de morrer, muito depois de morrer. Foi o herói póstumo de toda uma geração que olhava para o rock n' roll como aquilo que o género realmente é – uma forma mais rápida, mais sanguínea, de tocar os blues –, e ainda lhes trouxe a teologia necessária (vender a alma ao Diabo para tocar como Deus).

Calma: tocar como Deus? Pois. Foi exactamente isso que fez Chuck Berry, que não era nem nunca chegou a ser Rei, Pioneiro ou Mito. Mas foi dele que brotou essa entidade cósmica, essa energia inqualificável que dá pelo nome de riff, a postura maníaca e eléctrica que tantos outros emularam ao longo das décadas. O rock não morreu com Elvis, com o punk ou com a Internet: morreu quando Chuck Berry abandonou o seu corpo terrestre, não sem antes compor um último álbum, que acabou por ser lançado de forma póstuma. Apropriadamente intitulado Chuck, da mesma forma que alguns pedaços de literatura falam em Elohim, Jeová ou Alá.

Chuck é o monumento que faltava de alguém que não precisou de suar assim tanto para ter direito a monumentos: bastou-lhe nascer génio. Mais que um ponto final numa carreira que durou mais de seis décadas, é um álbum que resume, e bem, aquilo que foi a obra de Chuck Berry - canções simples e dançáveis e dotadas de uma energia que muitos replicaram e que por vezes até melhoraram, se bem que não haja amor como o primeiro. Canções que não precisavam de variar muito entre si para serem excelentes, que é basicamente o que Berry ensinou com "Sweet Little Sixteen" aos Beach Boys. Case in point: "Big Boys", que é apenas uma variação de "Johnny B. Goode", não tão icónica mas igualmente fantástica. Assim como "Lady B. Goode", esta tendo desculpa - é a sequela.

Tudo bem que as más línguas poderão dizer de Chuck que não traz nada de novo, ou que a uma avaliação positiva ao disco poderá partir de uma certa fetishização do passado ou de tempos mais ingénuos, sem as preocupações que moldam os dias de hoje. Talvez. Mas ninguém lhe retirará dois méritos: o de ser uma muita necessária pausa para respirar desses mesmos dias, e o de ser o testemunho final de uma das pessoas que mais contribuiu para que a música não fosse apenas pausa - porque foi sua a blueprint de outras ideias.

Chuck é o adeus a Chuck Berry, de lágrima no canto mas sorriso no rosto - só assim se poderá descrever o proto-reggae de "Jamaica Moon" ou os versos que se escutam em "Dutchman", história em formato spoken word e acompanhada por garimpa blues: I used to be an artist / Not one who sits and fiddle out on the curb / But in my day and time / My music was considered superb. É o único momento no álbum em que Chuck Berry errou: ainda hoje a sua música poderá ser considerada soberba. Só Deus, um verdadeiro, conseguiria que assim fosse.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
25/09/2017