A ironia começa no tĂtulo mas nĂŁo se fica por aĂ. Em Bossanova nada nos dirige atĂ© aos sons quentes vindos do Brasil que a bossanova traduz, mas mais curioso do que este apontamento Ă© o facto de, no ano de passagem para uma nova dĂ©cada, os Pixies lançarem o álbum mais retro da sua curta carreira. Mesmo assim, pixieano como sempre.
Após umas curtas férias posteriores ao estoiro chamado Doolittle, a banda reuniu-se com o produtor Gil Norton em Los Angeles e, assim, nasceu Bossanova - de uma pausa para reflexão. Santiago acabara de regressar do Grand Canyon, onde tentara “se encontrar”, David Lovering da Jamaica e Black Francis de uma viagem que resolveu empreender pela América com a sua namorada num novo Cadillac. Kim, por sua vez, ficara por Boston a tocar com Tanya Donelly e Josephine Wiggs nas Breeders. Estacionado o carro na garagem, Francis vasculhou os discos de surf music que tinha lá por casa e deixou-se contagiar. A presença dos fantasmas Dick Dale, The Surftones e Beach Boys em Bossanova não é inocente mas também jamais descarada. “Cecilia Ann”, um instrumental dos Surftones que aqui é revisitado e que serve de (estrénuo) arranque ao álbum e o uso em “Velouria” e “Is She Weird” de um theremin – instrumento facilmente detectável em Good Vibrations dos Beach Boys – serão os grandes pontos de contacto. De resto, surf music, onde? Apenas entranhada, disfarçadamente, no rock ardente de temas como “Rock Music” – perto de dois minutos de sufoco e guitarras em ebulição, a lembrar “Tame” –, “Dig For Fire” ou “Hang Wire” – o hino de estádio mais forte do repertório dos Pixies.
Bossanova é, claramente, um álbum mais rugoso do que Doolittle. A candura de outrora, empenhada na voz e no baixo de Kim Deal, mal se ouve. Perde-se, neste registo, alguma da harmonia conquistada anteriormente no contraste de registo Kim Deal-doce/Black Francis-gritante. Bossanova lembra sol tórrido, suor, oásis de água, inquietação, dificuldade em respirar. Simultaneamente, pressente-se esperança, glória e nostalgia em cada um dos poros da música do álbum.
“Velouria”, “Hang Wire” e “Is She Weird” – em tom gótico e viciante – soam mais 80’s do que todas as canções de Surfer Rosa e Doolittle juntas, o que não é necessariamente mau. Ironicamente estávamos em 1990 e para trás ficava a responsabilidade por alguns dos mais inovadores momentos da história do rock.
Por outro lado, “Allison”, “All Over The World” – o standard alt. rock mais ensaiado nos anos 90 por algumas centenas de bandas - e “Stormy Weather” oferecem-nos os Pixies mais Doolittle que poderĂamos reconhecer por aqui, a par da proeza pop estival “Dig For Fire”. “Ana” e “Havalina” picam o ponto para desmonstrar que a subtileza, expressa em tons amenos, tambĂ©m existia na mĂşsica Pixies.
Liricamente falando, mais uma vez a excelĂŞncia. Palavras sobre uma mulher que se despe ao sol, que caminha em direcção ao mar e desaparece com e pelas ondas. Palavras sobre palavras que nĂŁo se conseguem dizer. Palavras sobre aliens. Palavras sobre os mistĂ©rios que um poço nos pode reservar. Palavras sobre uma mulher Ă distância das estrelas. Palavras que anunciam tempestade. Palavras sobre paisagens idĂlicas que nĂŁo merecem existir neste mundo. Palavras que nĂŁo significam nada. Palavras que tudo significam.