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Sonic Youth Sonic Nurse

2004
Geffen


Hoje em dia é demasiado fácil ser egoísta com os Sonic Youth. Década e meia decorrida sobre discos como Sister, Daydream Nation, Goo e Dirty (certamente a sequência com maiores probabilidades de reunir consenso entre militantes, mais disco menos disco), a única hipótese de submergir novamente em profundas correntes de distorção e de irreverência adolescente - apesar de os Sonic Youth terem nascido um pouco para além do tempo útil para fazer justiça ao nome da banda - passa por ir à prateleira buscar a preciosa rodela já algo riscada por uns bons anos de trambolhões da bandeja do leitor de CDs para o chão, o que vai desiludindo fãs a cada disco lançado. A tendência na segunda metade da vida dos SY tem consistido em exercícios progressivamente menos arriscados e experimentais, com Murray Street, há dois anos, a consolidar definitivamente uma sonoridade aparentemente mais estudada e depurada, e bem menos abrasiva que a de outrora.

Sonic Nurse segue esse caminho, e ao mesmo tempo que a América das bizarrias se deixa encantar por novos príncipes, os Sonic Youth avançam com o álbum mais soft do seu repertório. Embora a agonia da guitarra em “Pattern Recognition†ou a bombástica e transpirada “Kim Gordon and the Arthur Doyle Hand Creamâ€, com Kim Gordon numa forma poucas vezes repetida, e até a recuperar o protagonismo recusado por Murray Street, reafirmem velhos devaneios sónicos, “Unmade Bed†ou “Stones†agarram-se a esqueletos mais definidos e adocicados, apesar de um pouco por toda a parte se encontrarem provas mais do que suficientes para incriminar os Sonic Youth sem direito a fiança. É sem dúvida o vigor da bateria de Steve Shelley nos crescendos, é também o noise imagem de marca que é pano de fundo no início de “The Dripping Dreamâ€, a demonstrar que os Sonic Youth vão escrevendo o presente sem romper irreversivelmente com o que está para trás – por vezes fica a ideia que estes riffs melodiosos foram gravados propositadamente por cima de uma velha gravação qualquer impregnada de guitarras em desvario; os mesmos ingredientes, medidas diferentes.
Tantos abusos depois, as guitarras foram conquistando respeito e amabilidade a Thurston Moore e Lee Ranaldo. Mas cuidado, nada de confianças a mais: continuam a servir avanços demolidores, às vezes em parceria com o baixo que em “New Hampshire†vai evoluindo possante e severo. “Paper Cup Exitâ€, na senda de “Skip Tracer†ou da mais recente “Karenologyâ€, assenta que nem uma luva na voz infectada de uma solenidade que quase podia fazer Ranaldo passar por pai dos mais irreverentes Thurston e Kim.

Se atravessar duas décadas de carreira sem hiatos significativos e conservar a vontade de gravar um álbum novo a cada dois anos não é para quaisquer uns, fazê-lo com aparente naturalidade, sem resvalar para a triste auto-caricatura, está ao alcance de menos ainda. Claro que para grande parte (talvez mesmo a maioria) dos devotos este não é o álbum desejado, mas mesmo nesse caso o problema será apenas de expectativas. Sonic Nurse é um excelente disco. Fazer de conta que não é dos Sonic Youth pode minimizar eventuais afrontamentos.


Carlos Costa
06/06/2004