Se um dia os brinquedos encaixotados decidissem organizar um motim no sótão, um medley das faixas que compõem este disco bem podia servir de hino a essa revolução. Os robots voltam a ganhar a preferência das crianças, e o responsável é Reznicek, que assina este disco sob a designação de Nova Huta. O músico de Hamburgo tem vindo a desenvolver um conceito (ou mito) que se resume a isto: pouco antes da sua morte, o seu tio Vrantislav "Bambij" Robot enviou-lhe um órgão Casio programado com 99 músicas que costumava usar para animar os trabalhadores de uma fábrica, durante um cinzento perÃodo de poderio Comunista na Polónia. O que podemos então escutar são variantes das tais 99 músicas, actualizadas e revestidas à imagem de Nova Huta. O disco chega-nos com o selo da Variz, editora portuguesa que tem vindo a desempenhar um exemplar trabalho na divulgação de novos valores da electrónica (nacionais e estrangeiros). Miguel Sá e Fernando Fadigas (Tra$h Converters / The Producers) são os paladinos que permanecem dedicados a lutar contra a maré de limitações de uma indústria atrofiada ao leme da Variz. Uma vénia para eles.
Here comes my seltsam voice mune-se de loops desavergonhadamente catchy e vocalizações cheias de glamour para proporcionar quase uma hora de despreocupado convÃvio com a música. Sim, porque de ouvidos apontados para Nova Huta todas as preocupações são secundárias. Ainda assim, a solidez do conceito não chega para camuflar algumas fragilidades (a música torna-se algo indistinta a partir da segunda metade do disco). À semelhança de Khan em "No Comprendo", Reznicek convida uma série de vocalistas para emprestarem voz aos seus temas. A celebração da alegre convivência cosmopolita aliada à multiplicação de alter-egos de Nova Huta
deixa-nos com um alucinado sorriso nos lábios. Além do charme que incutem, a variedade de ambientes e o idioma alemão (sempre apropriado a estas sonoridades) resultam numa espécie de efeito Willy Fog, que transforma o disco numa colorida digressão por recônditas fantasias cor-de-rosa. Here comes my seltsam voice
recupera aquela porção de nós que ficou presa às animações experimentalistas que Vasco Granja apresentava nos anos 80. "Das neue datschadelische volkslied" remete-nos para as manhãs de sábado passadas em frente à televisão, a pão com Tulicreme e leite com Cola-Cao.
A tômbola vai girando e soltando pérolas lo-fi a cada faixa. "Heb dir deine tränen für jemand anders auf" é a maior dessas pérolas e, num universo paralelo, seria número 1 das tabelas de dança. Reafirma-se a veia cosmopolita do disco, já que o refrão da dita faixa é cantado em três lÃnguas diferentes, incluindo português com sotaque brasileiro (na Portugal Bonus Track - obrigado, Reznicek). A calmaria chega no lounge robótico de "Grüne Liebe", que termina em inesperado curto-circuito. A "casiopop" de Nova Huta vai destilando pretextos mais que suficientes para que todos se rendam à dança. Já bem perto do fim, "Killing an error" é uma deliciosa curiosidade que adapta o clássico "Killing an arab" dos Cure à sonoridade do músico alemão.
Feitas as contas, "Here comes my seltsam voice" só peca por não se livrar do estigma que persegue grande parte dos discos afeiçoados a uma electrónica mais predisposta a divertir: aquece, mas logo depois arrefece. Nada a temer, visto que proporciona um gozo tremendo saborearmos os beats mais ou menos infantilóides sem sequer nos questionarmos acerca do que escutamos. Prazer por prazer. Os Ãndices de interesse só começarão a decair quando tal gozo partir em busca de novos ritmos. Em todo o caso, na memória ficarão paragens de Here comes my seltsam voice a que "o bichinho do ouvido" procurará voltar. Há aqui potencial para gerar nostalgia a curto e longo prazo, pois então. Na sua função lúdica, satisfaz plenamente. Enquanto registo relevante, apenas cumpre tangencialmente. A Huta continua, todos a dançar p'ra rua!