Um jovem de cabeça rapada fita-nos. O suor escorre-lhe pela cara. A boca vocifera, o dedo acusa, o tronco estĂĄ ora erecto, ora curvado para que o jovem grite ao ouvido de alguĂ©m. Um palco exĂguo quase ao nĂvel do solo. Estamos em Washington, D.C., no ano de 1984. O jovem de que falamos Ă© Ian Mackaye. A banda, Minor Threat.
Na mĂșsica com o mesmo nome, Mackaye pede ao guitarrista Lyle Preslar "play it faster". A banda segue-os. Mackaye berra mais Ă frente "we're just a minor threat". "Ameaça menor". Uma declaração em jeito de grito de uma subcultura juvenil em febre criativa. Os Minor Threat sĂŁo umas das dezenas de bandas que nasciam como cogumelos nos terrenos fĂ©rteis de Washington no inĂcio dos anos 80, sob a alçada da Dischord, editora propriedade de Mackaye e de Jeff Nelson (o baterista dos Threat). O grito Ă© tambĂ©m uma afirmação de um estilo de vida, o Straight Edge, no seu melhor, um apelo Ă libertação e auto-afirmação; no seu pior, uma cartilha de comportamentos em jeito de dogma. Ian Mackaye demarcar-se-ia anos mais tarde do Straight Edge, enquanto adopção literal e dogmĂĄtica do "don't smoke don't drink don't fuck" escrito por ele para "Out of Step". Os seguidores do Straight Edge esqueciam-se do "at least i can fucking think" que dava sentido Ă frase.
"Complete Discography" reĂșne todas as gravaçÔes da banda. Este Ă© antes de mais um documento ideolĂłgico e cultural. Um disco com significado idĂȘntico a Never Mind the Bollocks, uma colecção de cançÔes que valem mais do que o seu significado musical. Os Minor Threat tocavam um hardcore punk simples, de tempos rapidĂssimos, guitarras afiadas - um furacĂŁo anti-melĂłdico. Receita simples e mimetizada por milhares de bandas. Os Minor Threat eram, porĂ©m, musicalmente superiores a quase todo o punk subsequente.
Dos 26 temas da compilação, apenas dois ultrapassam a marca dos trĂȘs minutos. A primeira metade do disco reĂșne as cançÔes da fase em que a banda tinha apenas uma guitarra e que produziu os maiores clĂĄssicos ("Straight Edge", "Screaming at a Wall", "In My Eyes"). Musicalmente, os temas nĂŁo diferem muito uns dos outros, como Ă© costume entre punks. A bateria de Nelson raramente cessa, salvo para voltar Ă carga, tempestuosa. Mackaye berra e aponta o dedo a todos, cena hardcore incluĂda, adultos, falsos amigos, sociedade, alienados em geral. Ouça-se "Out of Step", um minuto e dezoito segundos de violĂȘncia, para compreender a essĂȘncia dos Threat e do que devia ser o hardcore, se o talento fosse distribuĂdo de forma justa pela jurisprudĂȘncia divina.
Com a entrada de Steve Hangsen para segunda guitarra e a passagem de Brian Baker para o baixo, o grupo pĂŽde experimentar mais, perdendo parte da intensidade. VersĂ”es bem humoradas de clĂĄssicos dos anos 60, "Steppin' Stone" dos Monkees e "Good Guys Don't Wear White", explicam isso mesmo, mas "Betray" e "It Follows" sĂŁo aquilo que esperĂĄvamos da banda. "Think Again" tem o dedo acusador de Mackaye apontado aos adolescentes eunucos. "Cashing In" Ă© uma rockalhada a gozar com os mecanismos capitalistas da indĂșstria do rock, com direito a solos cheesy e coros no refrĂŁo. A fechar o disco, o Ășltimo single da banda, "Salad Days", mostra um Mackaye desiludido: "on to greener pastures the core has gotten soft look at us today we've gotten soft and fat waiting for the moment it's just not coming back". Mackaye, um dos pais do gĂ©nero, desiludido, fala do seu "filho": "baby has grown older, it's no longer cute".
O hardcore nĂŁo foi inventado pelos Minor Threat. Os Bad Brains sĂŁo tidos por muitos como os pais do gĂ©nero. PorĂ©m, nunca o hardcore fora simultaneamente tĂŁo rĂĄpido, incisivo, orgulhoso, politicamente empenhado ("the personal is political"). Nunca o hardcore tinha sido tĂŁo hardcore, intenso, fixado e consciente. A influĂȘncia dos Minor Threat nĂŁo se esgota na prĂłpria banda: das suas fileiras saĂram os pioneiros do emocore Embrace e os deuses indie Fugazi, ainda hoje um caso Ășnico de convicção e de criatividade.