Cliff Martinez chegou a fazer parte dos Red Hot Chili Peppers como baterista, mas cedo colocou de parte a hipótese de passar o resto da vida a actuar vestindo apenas uma meia no pénis. Tal decisão poderá ter sido crucial já que veiculou para o universo cinematográfico um dos seus mais interessantes valores actuais. Após ter ganho caule nas colaborações que manteve com bandas como Captain Beefheart & The Magic Band ou os emblemáticos Dickies, Cliff Martinez optou por dedicar a maior parte do seu tempo e criatividade à composição de música para cinema.
Conseguiu a sua primeira oportunidade num episódio da série televisiva Pee-Wee's Playhouse (há que começar por algum lado...), para pouco tempo depois ter garantido a preciosa atenção de Steven Soderbergh (reconhecido e aclamado por trabalhos como Erin Brokovich ou O Falcão Inglês). Providenciar a banda-sonora a Sexo, Mentiras e VÃdeo foi o primeiro grande desafio superado por Martinez, que desde aÃ, merece a total confiança do Benjamin da nova vaga de cineastas norte-americanos, com o qual vai acumulando honrosas colaborações (Erin Brokovich é uma das raras excepções, visto não ter contado com Martinez). Assim como a quÃmica entre Hitchcock e Herrmann marcou incontornavelmente a sétima arte há 50 anos atrás, acredito que a parelha Soderbergh/Martinez venha a ser reconhecida (caso ainda não seja) por ter estabelecido a vanguarda no que respeita a bandas-sonoras atmosféricas mais afeiçoadas à electrónica. Agora que terminaram de ler o Reader's Digest sobre Martinez, apontar baterias a Traffic.
Após a sua projecção, não sobra na memória um extracto de melodia que se possa levar nos lábios a caminho de casa. Tal como o filme em si, o subtexto sonoro não impõe uma só verdade ou direcção a tomar. Em vez disso, emprega um tom discreto ao serviço do lema: "menos equivale a mais". Martinez vai articulando texturas ambientais planas com beats minimalistas, facilitando o espaço necessário a cada um para elaborar o seu parecer. O excesso sufoca quem medita neste tapete de onde se observa três realidades distintas unidas pelo flagelo da droga. Soderbergh faz desaparecer a redoma que protege aqueles que se julgam imunes à capacidade destrutiva dos estupefacientes, Martinez sublinha a universalidade da condição humana e o quão facilmente corruptÃvel esta é, transformando os sentimentos dos peões em substância sonora capaz de sugeri-los. É irrepreensÃvel a forma como o prodigioso compositor vai aplicando as variações mÃnimas em conformidade com a situação em que o protagonista está inserido - refiro-me a Javier Rodriguez Rodriguez (Benicio Del Toro) em particular.
Admirável é também a sensibilidade com que vai moldando a ligeirÃssima percussão aos samples etéreos captados a partir das guitarras de Michael Brook e David Torn. Martinez bateu também à porta (literalmente) de Flea e Herbie Hancock, que facultou o seu toque de génio nos teclados (escutar "The police won't find you car" e conter o balouçar da anca). Traffic age como um termóstato capaz de nos transportar de El Paso a Washington de uma faixa para a outra. A trip irá com certeza agradar a gregos e troianos; amantes de ambient, pós-rock ou dub. Não desiludirá também aqueles que partilhem das preferências de Martinez: o omnipresente Brian Eno, Kraftwerk (fase Autobahn) ou Lalo Schifrin. O próprio Brian Eno é o responsável pela composição que encerra a pelÃcula com a devida serenidade: "An Ending (Ascent)" - o "What a wonderful world" dos sintetizadores, digo eu.
Avancem sem medos os que ainda não assistiram ao filme ou que o reprovaram pelo seu carácter panfletário, pois Traffic é um subtil milagre da música ambiental que vale por si só. A caminho do aeroporto numa tarde solarenga ou contemplando a vista a partir de um terraço, este metamorfo preenche apenas os vazios. O pensamento que trate do resto. Eu visualizo o México, mas isso sou apenas eu.