Dificilmente sabermos se filosofia de Cru e Cozido de Claude Lévi-Strauss tem alguma coisa ver com a música que aqui ouvimos – se é que alguma vez o quinteto alemão se terá cruzado com as Mitológicas do antropólogo belga. Mas a haver alguma ligação – uma mera coincidência – é na ideia de que muito do que é cozinhado por mera intuição esconde muito daquilo que o ser humano é na sua essência. Um acaso não será realmente um acaso? Basicamente, por mais espontâneo que algo aconteça, tal é consequência de uma profunda cultura da qual nem temos consciência. A transformação do cru para o cozido é – segundo Lévi-Strauss – um resultado cultural.
Pela página do Bandcamp do Hidden Jazz Quartett ficamos a saber que Stephan Abel, Lutz Krajenski, Olaf Casimir, Matthias Meusel e Ulrich Rode – por algum motivo o Jazz Quartett tem mais um T, eles são cinco! – conluiaram porque Ralf Zitzmann, dono da editora Agogo Records, e promotor das noites no Calamari Moon em Hanôver, teve uma epifania: o som que estava a tocar numa dada noite no clube – "DJs were spinning spicy jazz sounds" – vibrava como se na verdade houvesse um quarteto jazz por trás da cortina. E ele lá pegou no telefone e convidou/ convenceu os cinco músicos a se juntarem e a tocarem em conjunto.
Talvez seja por isso que este disco de estreia do Hidden Jazz Quartett soe tão incrível: toda a empresa surge por inusual iniciativa; tudo é cozinhado por intuição; e tudo acontece porque – de alguma maneira – toda aquela gente tinha de se encontrar eventualmente. Raw and Cooked é um conjunto de ideias que passam de cru a cozido. Q.b. É um sofisticado preparado que entra na esfera do acid-jazz... aliás é acid-jazz como há muito não o ouvíamos, tão genuíno: Ralf Zitzmann e Christian Decker (os produtores do que aqui acontece) fazem a ponte entre o palco jazz, a pista de dança e o alcatrão da rua; entrelaçam o elemento orgânico e o formalismo da programação electrónica; geram harmonia entre o clássico e o futuro.
Os músicos, todos eles bem experientes – o inspiradíssimo saxofonista Stephan Abel, por exemplo, tocou ao lado de gente como Randy Crawford, The Temptations, Inga Rumpf, Angela Brown, Roger Cicero ou Maria João –, não estão preocupados em serem meramente proficientes. Eles simplesmente soltam o génio. E o que sai pelos altifalantes é uma refrescante abordagem ao género: o disco é um contínuo de jazz cortês que se deixa enamorar pela poesia da soul ou pela sensualidade do r&b (Bajka, Greg Blackman e Anthony Joseph são vozes que dão muita, muita alma). Sem hesitações, Raw and Cooked é um dos discos do ano: ele é um petardo groove que 2016 preparou com esmero, e que merece as melhores atenções.