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MEDEIROS/LUCAS Terra Do Corpo

2016
Lovers & Lollypops


O jazz vem do cais, acompanhado pelo estalar dos dedos e pelo desatar dos nós das cordas que prendem a âncora ao navio: é "Sede", primeira porta de entrada para Terra Do Corpo, o segundo álbum de MEDEIROS/LUCAS, segundo de uma trilogia que se iniciou com o magnífico Mar Aberto. Aí, Carlos Medeiros e Pedro Lucas apresentavam-se como dois marinheiros à procura de terra firme, uma qualquer onde pudessem assentar bandeiras e sonhos. Agora, são dois colonos: a terra é nullius, é do corpo, é das sementes que trouxeram do seu próprio local de origem.

Uma semente que germina a olhos vistos, dá fruta deliciosa e necessária à sobrevivência; uma semente que é esta forma de cantar em português - mas que podia ser em inglês, em afrikaans, em língua morta. Iria ter o mesmo resultado. O fascínio de MEDEIROS/LUCAS, agora que aportaram em terra, é verificar que pertencem a todas as terras de todos os marinheiros e sonhadores. Já não é exequível tomá-los como meramente "açorianos" ou "portugueses": são donos da sua própria nacionalidade, objecto de culto e de cultura.

Cultura, sim, melting pot onde cabe o blues, a pop, a electrónica, as guitarras de eriçar cabelos e aquelas de os acalmar e a poesia, desta feita oriunda da pena de João Pedro Porto, convidado por Lucas e Medeiros para erguer um novo mundo, para o popular de gente fiel e patriótica - e vertical, evidentemente. "Safra De Gente" assim o determina. E depois há o fado transfigurado de "Sístole Perdida", melancolia exacerbada pelos dedos de Filho Da Mãe e de Tó Trips. Novo mundo, nova nação, colonos. Ei-los a todos: Carlos Barretto, João Pedro Porto, Filho Da Mãe, Tó Trips, António Costa, Selma Uamusse. Aqueles que os MEDEIROS/LUCAS consideraram essenciais na construção desta terra, na disseminação desta linguagem musical e poética. Sem tiros ao lado.

Porque o projecto, que era dos Açores, era de Portugal e era do vasto e maravilhoso oceano, agora atracou, e passou a ser paradoxalmente de nenhum e de todos. Terra Do Corpo é a prova cabalar de que os MEDEIROS/LUCAS fazem música como nenhum a faz hoje em dia, exceptuando os Ermo; e é um álbum para o mundo inteiro, especialmente o que se pasmar com a mudança de toada rítmica aquando do refrão de "Asas", que abrir a boca com a prestação vocal de Carlos Medeiros enquanto os sintetizadores sacros de "Azougo" ecoam ao fundo, que erguer os braços durante a slow jam que é "Fome De Vento". Terra Do Corpo é o segundo de uma trilogia, a construção de uma civilização. Ano que vem, cá estaremos para exaltar essa nova sociedade.


Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
09/05/2016