bodyspace.net


PJ Harvey The Hope Six Demolition Project

2016
Island


Na capa de Stories From the City, Stories From the Sea (2000), Polly Jean aparece muito cosmopolita, de óculos escuros, agarrada a uma mala com ar de ser cara e a atravessar uma movimentada rua de Nova Iorque. Esse disco rendeu-lhe o primeiro Mercury Prize. O segundo viria com Let England Shake (2011), o álbum que precedeu este The Hope Six Demolition Project, que não podia ser menos cosmopolita.

Volvida mais de década e meia, o trabalho gráfico, bastante mais críptico, e o ambiente do novo álbum também não podiam ser mais diferentes de Stories.... PJ Harvey escreveu estas canções durante as viagens que fez ao Kosovo, ao Afeganistão e a esse outro cenário de guerra chamado Washington, DC. Nestas digressões quase jornalísticas que duraram cerca de três anos, Harvey fez-se acompanhar pelo fotógrafo e realizador Seamus Murphy.

Escritas as canções, o álbum foi sendo construído às claras como parte de uma instalação artística na Somerset House, em Londres. O público interessado teve a possibilidade de ver PJ Harvey em várias sessões com os produtores Flood e John Parish. Curiosamente, o trabalho de campo menos arriscado acabou por se revelar o mais problemático: acompanhada por Murphy e por um jornalista do Washington Post, Polly Jean visitou um exemplo acabado do plano urbanístico que reconfigurou várias cidades dos Estados Unidos.

O Hope VI, um plano que remonta ao início dos 1990s, visa demolir áreas habitacionais com altas taxas de criminalidade e generosos níveis de degradação para construir infra-estruturas com melhores condições de habitabilidade. Acontece que esses projectos têm afastado os antigos residentes, que foram deixando de conseguir suportar o aumento do custo do parque residencial. Digamos que PJ Harvey não foi simpática na reportagem que fez do que testemunhou e que isso lhe valeu fortes críticas dos políticos e da comunidade locais. Seja como for, a experiência acabou por inspirar o título do álbum e a música que o inaugura, “The Community of Hope”, uma tirada entre o literal e o irónico.

Washington volta a ser mencionada de forma implacável em “River Anacostia”, o rio esquecido de DC, com altos índices de poluição e um criminoso desinvestimento, mas que serviu de pretexto para Harvey incorporar elementos de espiritual negro. E ainda em “Near the Memorials to Vietnam and Lincoln”, uma música estranhamente festiva para evocar uma das guerras mais sangrentas em que a América se meteu e também o Presidente que aboliu a escravatura.

As geografias kosovares e afegãs estão distribuídas ao longo do disco. Há, por exemplo, a história pungente da velha que guarda as chaves dos vizinhos, provavelmente mortos na guerra, na vã esperança de que um dia regressem (em “Chain of Keys”, com belos saxofones barítonos a fazerem lembrar Morphine). Há as duas referências ministeriais, primeiro “The Ministry of Defence” (“kids do the same everywhere/ they’ve sprayed graffiti in Arabic”), depois “The Ministry of Social Affairs” (um sorumbático conto que vagueia entre o blues e o jazz para cantar sobre pessoas amputadas e cadelas grávidas). As duas últimas músicas são duas pequenas relíquias: “The Wheel”, um número rock com palminhas que lança um pouco de luz sobre o disco, apesar de tratar do desaparecimento de crianças (“now you see them, now you don’t”), e “Dollar, Dollar” (o dilacerante relato com pontuações de jazz que conta o encontro com uma criança afegã que lhe pediu esmola).

Em The Hope Six Demolition Project, PJ Harvey faz-se repórter de guerra e faz da música o seu bloco de notas. O álbum não levará certamente a paz nem a estabilidade aos cenários retratados mas sempre faz mais do que os jornalistas de secretária que se limitam a traduzir os takes das agências noticiosas que efectivamente estão no terreno.


Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
20/04/2016


Statcounter