Não é disparatado dizer que 2016 já valeu a pena porque rendeu mais um disco dos Heliocentrics. A banda londrina, que gravita em torno das habilidades do baterista e produtor Malcolm Catto, manteve sempre uma forte ligação não apenas ao funk e ao jazz mas também ao hip-hop. Mesmo antes de editarem o álbum de estreia, Out There (2007), já tinham sido a banda de apoio de DJ Shadow. De resto, esse disco contém a faixa “Distant Star”, que viria a merecer um retratamento a cargo dos rappers Percee P e MF Doom.
Até chegarem a este From the Deep, os Heliocentrics colaboraram com o pai do jazz etíope Mulatu Astatke, no fundamental Inspiration Information, Vol. 3 (2009), e com o músico americano Lloyd Miller (no ano seguinte), editaram o desafiante 13 Degrees of Reality (2013) e, em 2014, lançaram dois novos discos de colaboração, com Orlando Julius, o veterano saxofonista da Nigéria, e com Melvin Van Peebles, o pioneiro do cinema e da música de raiz afro-americana. Com este impressionante currículo, cada novo disco é um permanente desafiar de normas, que, a propósito, a banda previamente tratou de desregular. Não há balizas normativas capazes de conter o ímpeto criativo desta gente: aqui, o groove de sempre estica-se como nunca numa Via Láctea de peles, sintetizadores e ecos de Kingston.
From the Deep é um disco longo (são 19 faixas no total) mas não demorado. As canções são maioritariamente curtas, por vezes chegam a parecer interlúdios de poeira cósmica, ambiente de western e pontuação jazz (“Discovery”, por exemplo, é isso tudo). As duas faixas mais longas, que mesmo assim não ultrapassam os cinco minutos e meio cada uma, são alçapões onde parece ainda caber mais qualquer coisa onde já cabia tanto: “The Pit” devia ser estudada nos conservatórios de música, tal é a riqueza instrumental que vai do vibrafone endiabrado aos sintetizadores analógicos mas também passa por um saxofone entre o sussurro e o lamento; “Outer Realms, Pt. 2” parece uma lixa electrónica, com batidas pulsantes e tralha que fica a meio caminho entre o retro e o digital.
Não se pense, contudo, que os temas mais curtos são para encher. Isso é verbo que os Heliocentrics não conjugam, pelo menos não o fazem de forma inconsequente. “Thunder & Lightning”, apesar da duração inferior a minuto e meio, poderia figurar numa trilha de Morricone para um filme de base futurista. “Primitivos” começa por ser ventania cibernética para se transformar em thriller atmosférico. E o que dizer de “Night and Day”? Um tema que rebenta com os quatro minutos da pop mais quadrada para neles atafulhar instrumentos de cordas e electrónica crepuscular e que ainda provoca nostalgia quando, nos segundos finais, se ouve o que parece um modem do início da Internet de massas.
Os Heliocentrics não inauguram com From the Deep um novo olhar instrumental sobre o futuro mas mostram-se muito inconformados com o presente. Se acrescentarmos que este material foi desenterrado dos arquivos na sua forma mais crua e que, por isso, os levou a um passado recente, temos aqui o grande espectro temporal coberto. Talvez não fosse má ideia colocar este disco numa posição destacada nas vossas listas provisórias para, no final do ano, não se cobrirem de vergonha.