”Days With Dr. Yen Lo”, pelo menos no formato físico, é adquirido mais facilmente no site do próprio Ka. O próprio até avisa que não vai todos os dias levar encomendas aos correios, quando o fazemos. E é uma espera que vale bem a pena. A segunda vez (a primeira foi no EP ”1200 BC”) que Ka e o produtor Preservation trabalham juntos na totalidade de um disco, vem reforçar a posição do MC novaiorquino como uma voz a merecer destaque no hiphop circa-2015. Se é certo que não estamos propriamente a falar de um Jandek do hiphop (ele não esperou trinta e tal anos para dar entrevistas), não deixa de ser uma forma de demonstrar o controlo, carinho e dedicação que Ka tem por aquilo que, decerto, vê como a sua arte.
Ka tem, acima de tudo, uma voz com tudo para se tornar intemporal. Nem corta com o passado, nem se rebaixa perante ele. A produção de Preservation não é ela própria devedora de nenhuma escola. Em vez disso, os beats são elemento usado de forma espartana, e os baixos, orgãos, sintetizadores, e outros elementos, predominam, criando uma penumbra em redor da, já de si sombria, voz de Ka. Conforme já acontecia em ”The Night’s Gambit”, Ka não levanta a voz acima no grau de sussurro. A sua Nova Iorque é fria, física e psicologicamente, assemelhando-se à do histórico ”Liquid Swordz” de GZA. Embora sem o mesmo imaginário explicitamente criminológico deste, Ka não deixa de falar no “cycle of revenge and sadness” que assola tantas vidas. E o potencial do MC de criar um culto semelhante, em termos de fervor, à sua volta não deve ser descurado. Mesmo sem o logotipo Wu-Tang.
As rimas de Ka são opacas, como se o primeiro destinatário das mesmas fosse a própria mente de onde elas saíram. Ou um amigo chegado sentado na mesma sala iluminada por uma luz fosca. É possível, ainda assim, extraír algumas frases emblemáticas, como “I use a mic device to give a slice of life”, ou “I show them sustained success”. Esta última por oposição aos esquemas de enriquecimento rápido de outros MCs. A imagética, interna e externa, sucede-se em catadupa, premiando uma atenção cuidada, e não deixando dúvidas relativamente ao talento de letrista e MC de Ka. O seu flow é contínuo, assombrado, como um carro de cor escura que anda pelas ruas desertas com as luzes apagadas. Se de Burial dizem que faz a música para viagens nocturnas de autocarro, Ka faz a mesma viagem, mas com todos os sentidos alerta.
Yen Lo, o nome que a dupla Ka e Preservation assumiu neste disco, é uma personagem do livro ”The Manchurian Candidate”, no qual executava técnicas de lavagem cerebral em soldados americanos. O disco não acompanha a história do livro (que, confesso, nunca li), nem sequer assume uma ordem sequencial no título das músicas (todas “Day…”) deixando em aberto o porquê da escolha do nome do psiquiatra chinês. Quererá o “Till we meet again feed your friends some Yen Lo” que encerra o disco dizer que Ka tem o poder de alterar a realidade que cada um percepciona, graças às suas letras? Afinal, esse é um dom que tem acompanhado os bons escritores de canções desde há muito. E, neste extraordinário disco, o seu mundo e de Preservation pode parecer insular. Mas a vontade que fica é de deixar que nos absorva e inebrie.