Na sua obra O Cão dos Baskervilles, Sir Arthur Conan Doyle coloca o seu personagem Sherlock Holmes a relatar uma noite em que, embora o seu espírito tenha vagueado pelas charnecas de Devonshire, o seu corpo esteve no mesmo sítio, e consumiu “dois grandes bules de café e uma quantidade incrível de tabaco”. Substitua-se estas substâncias pelos charros – e algum álcool e Xanax - que sao referência constante na música de Earl Sweatshirt, e não será complicado imaginá-lo a passar uma noite em casa, rodeado das mesmas, a escrevinhar e a debitar os pensamentos e rimas que compõem o seu novo disco. Claro que Earl não se dedica a resolver crimes. A não ser que se ache que a malta que se quer aproveitar da fama e do talento dele sejam “criminosos”. Trata-se, isso sim, de visualizar o paralelo entre duas personagens que vivem por largos minutos dentro das próprias mentes, a usá-las para procurar algum sentido naquilo que está “lá fora”.
Tal como no anterior Doris (álbum do ano de 2013 deste vosso amigo), boa parte da produção de I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside é responsabilidade do próprio Earl. Que aqui se revela mais soturno e arrastado que nunca. Muito reverb nas guitarras, muita sujidade, baixos letárgicos. Os beats parecem submergir, repercutir como o som de balas, ou afogados em xarope espesso. Só a parte instrumental deste disco fá-lo-ia uma obra valiosa de se ouvir. Aliás, se um dia vier a ser editada, um pouco à semelhança das Special Herbs de MF Doom, ninguém deverá ficar espantado. Mas, tal como no caso do senhor da máscara de metal, Earl é um óptimo MC e letrista. E o disco, da forma em que nos é apresentado, deve ser ouvido como um todo coerente. Um todo onde o seu autor oscila entre diferentes pólos. Seja o pólo hedonista dos prazeres trazidos pela fama. Seja o pólo desconfiado dos falsos amigos que aparecem como cogumelos nestas alturas, que obriga a procurar refúgio naqueles que ele sabe serem verdadeiros. Seja o pólo da família, que sempre teve grande importância para Earl. Como a mãe que o mandou para uma escola/reformatório na sua Samoa natal.
Os versos de Earl Sweatshirt neste álbum andam geralmente à volta destas temáticas, sem nunca encontrar um ponto de equilíbrio que satisfaça o seu autor. Ou que, pelo menos, o faça parecer feliz e realizado. Earl sabe o talento que tem, e também sabe os riscos que ele lhe traz. Sabe que a vida é efémera, e também sabe que não a quer tornar mais efémera ainda. Sabe que conquistou um grande número de fãs que admiram o seu talento, e sabem as suas letras de cor e salteado. E esses fãs irão devorar I Don’t Like Shit… com sofreguidão. E ao mesmo tempo não tem a certeza de saber lidar com essa pressão.
O disco são 30 minutos que passam - mesmo - a correr. 30 minutos em que o flow de Earl se apresenta mais lento e pausado do que em ”Doris”, a combinar com as temáticas do álbum. As palavras parecem sair ao ritmo a que são postas em papel. E ele apresenta-se mais focado e introspectivo que nunca, a ponderar sobre qual é o seu verdadeiro estado de espírito no momento presente. Se calhar às vezes bastava-lhe ser um puto de 21 anos que gosta de charros, miúdas e estar com os amigos. Mas as suas músicas transmitem a nítida sensação de uma necessidade de se exprimir. De por cá para fora o que o diverte e o que o atormenta. De procurar algum sentido, ou de pelo menos perceber que ele não existe. Assim se formam os cultos. Assim se revelam grandes autores.