bodyspace.net


Os Príncipes Reinaldo

2014
BOOM CHICKA BOOM


Efabulo que ali entre o chamado boom do rock português e os anos dos CDs ultra-multi-platinados, a sensação de se encontrar na secretária coisas como Coisas que Fascinam, Mutantes S21, Guia Espiritual ou Cão! terá sido semelhante a receber no correio Reinaldo. Não quero cometer a indelicadeza alarve de estar já a comparar, nivelando por tão alto, Os Príncipes a Mler Ife Dada, Mão Morta, Três Tristes Tigres ou Ornatos Violeta (entre poucos outros, neste capítulo). Pela óbvia vertigem do embargo e estrago da queda, tanto para eles como para mim próprio. Mas há um motor, mais do que um motivo, que movimenta a efabulação e que é a provável mesma sensação de alguém ter dito então: “Eh pá, estão aqui uns gajos que tem uma coisa nova que não ligam nada à nova coisa”.

Logo à primeira audição (que não se aconselha na emergência de um sono merecido; avisa-se) a sensação que fica é a de que Os Príncipes sabem o que se anda a passar, sabem o que já se passou e outras coisas mais, mas que quando estão a escrever/compor/gravar/produzir as suas canções não querem saber de nada. Pegam nesses saberes todos, não lhes passam cartão e fazem o que lhes apetece. Percorrem um caminho adivinhável, dão-nos uma guinada sem perder o prumo e seguem o rumo que ainda aperfeiçoarão (ficamos nós a querer).

É aquela displicência perante cânones ou mercados que faz a música popular. Não necessariamente a das tabelas de popularidade, mas a que prossegue, dentro ou fora destas, porque será alicerce para nova displicência e, assim, recordada. A mim, agora, recordaram-me aqueles momentos históricos e, pelo menos, os referidos quatro álbuns: alguns pela própria verve (o dos TTT, particularmente), todos pela tal displicência e alguns, ainda, por também parecerem saber o que estão a fazer. Ou seja, tanto “quero lá saber”, também terá muito que se lhe diga.

Por exemplo, numa análise ligeiramente linear, há um nome mais recente que também pode ser apontado musicalmente a Os Príncipes: o dos peixe : avião. Nomeadamente, nos dois primeiros temas de Reinaldo; “A Quem Dá Sei Eu” e “Fava” (ao que o alinhamento seguido de duas canções de construção análoga não será alheio). Mas se tal me parece inteiramente aceitável para a primeira faixa, nos seus dois tempos reflexivo (guitarra dedilhada, ecos de distorção branca) e activo (guitarras cortantes, timbalões a fundo e clamores em coro); já o segundo tema emancipa-se num ribombar que revejo em territórios mais longínquos da banda de Braga, menos pensados e mais extrapolados. E, chegados à terceira faixa, “Seja Como Eu Aconteço”, perante as mais imberbes drum machines (imaginem Afrika Bambaataa, imaginem os Eurythmics na garagem…) e umas marimbas de tinir oriental e ficamos conversados quanto ao assunto.

Mas passemos a linha do ligeiramente linear e não será difícil definir a singularidade de Os Príncipes, mesmo sem sair de “A Quem Dá Sei Eu”, agora na vertente lírica. É uma canção de desencontro, parente do poema “Desencontro” de Jorge de Sena. Metafórica e esparsa; feminina. A mesma linha de raciocínio que servirá para “Seja o que Aconteço” ou “Sinto o Chão”, embora com laivos de surrealismo.

Nova guinada no alinhamento e o instrumental “Os Putos” (tarola seca, poucas notas nas cordas, coro de marcialidade dorida atrás) evoca realmente Mão Morta, sendo as guitarras depois levadas a “Sinto o Chão” numa soltura mais Pavement do que shoegazer para uma vocalização reminiscente dos coros femininos tradicionais portugueses. Segue-se o single “Não Cai”, que se adivinha retrato social como se os House Martins cantassem Throwing Muses de megafone. O disco termina com o contrabaixo fundo de Eduardo Silva (DEP, Zelig, Pluto…), ruídos e rangeres em fundo e a voz a embalar para uma “Música do Coração”.

Para fazer assim o que nos apetece e sair-nos, é preciso saber algo. O que nos ensinaram ou que aprendemos, ou que sabemos estar a descobrir. O facto de Os Príncipes serem Jorge Queijo (mais conhecido pelos Torto, estudioso de percussão, electrónica ou improvisação) e Maria Mónica (artista plástica, ilustradora, também ligada à OGBE de Peixe), não será de certeza despiciendo. Truncando os dois últimos versos do disco acho que estamos mais perto da explicação, e para todos os casos: “…o sentir cá dentro (…) dá-se bem com a razão”.


Eduardo Sardinha
19/11/2014