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Lucinda Williams Lucinda Williams

1988


Lucinda Williams é senhora de uma voz maior do que a folk que anuncia. Houve quem dissesse tratar-se de Bob Dylan no feminino. Certo é que o seu lendário apego às canções cava uma sepultura funda para os embelezamentos do trabalho de estúdio. Não deixa de ser perfeccionista, talvez por isso o seja. O fundo do seu catálogo está esquecido em edições pequenas, levadas a efeito por casas que anuíram na sua teimosa luta pelo controlo criativo. Nada em Lucinda Williams é caritativo, manifestação espontânea da arte no manejo de técnicas de gravação. O mundo que estampa nas suas letras é aferido nos seus detalhes mais encobertos.

Cria personagens carregadas de conflito, ávidas de escaramuças que as levem até à carne. Só quando a carcaça da besta está a descoberto a poeira pode assentar. As gravuras que pinta são retratos de vida, daquela vida que tem de insolente o que tem de pulsante. A vida que se espreguiça em pequenas povoações, contra paisagens de traços categóricos a perder de vista. A sua escrita é evocativa dessas fábulas civilizacionais que se desenvolvem como ervas daninhas, de raízes profundas na consciência das comunidades.

Nasceu em Lake Charles, em LA, no início do ano 1953. Do pai herdou a paixão por Hank Williams, pelas palavras e pelo blues do Delta. Da mãe extraiu as sementes da folk que viriam a germinar no clamor da sua vida errática. Errática e nómada foi a sua existência primeira. Acompanhou os seus progenitores por Louisiana, Mississippi, Georgia e Arkansas, também pela Cidade do México e por Santiago, no Chile. A diáspora reflectiu-se na música que veio a compor. Os destinos são diversos, os itinerários cruzam sensibilidades diferentes, novos sabores e sonhos.

Na adolescência, foi dispensada da escola por se recusar a proferir a Pledge of Allegiance, encerrada nas palavras I pledge allegiance to the flag of the United States of America, and to the republic for which it stands: one nation under God, indivisible, with liberty and justice for all. O seu credo é outro, sem juramento nem bandeira. Construiu à volta de si um culto porque pulverizou crenças e concebeu novos berços gerativos. Este seu segundo álbum, homónimo e contendo material novo, foi um parto difícil. Foram necessários oito anos para que inscrevesse novas canções na pedra do tempo. De trato acidentado, Lucinda Williams chama a si os desígnios do blues, da country e da folk no longo calvário que foi a gestação deste disco.

Vive o âmago de cada uma daquelas linguagens com um sentido de abandono. Canta as relações de terceiros na primeira pessoa, perdendo-se nas suas dores, tingidas de lágrimas e determinação. A latência melódica bombeia o líquido vital por entre os interstícios das palavras magoadas. Tudo é sangue em Williams. Há desejo e retiro quando habita o ermo solitário. Há consciência da duração e vingança. Neste sentido, desfolha sentimentos e emoções até chegar ao tecido carnudo, que segrega a seiva bruta que escorre da sua boca, das suas palavras cantadas.


Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
17/11/2003