Wadada Leo Smith tem mais episódios superlativos na sua longa discografia do que muitos dos melhores músicos, mas Ten Freedom Summers é, sem a menor dúvida, a sua obra-prima, aquela criação com que o seu nome será para sempre conotado. A relevância das suas quatro horas e meia de cinema musical (ouve-se como se visse um filme) transcende a carreira do trompetista e compositor – é uma obra-prima do jazz e da música em geral. Nisso, a crítica especializada e a generalidade dos melómanos são unânimes no coro de elogios que este álbum “conceptual” vem recebendo.
Trata-se de um preciosa adição aos discos que reclamaram e declamaram a emancipação negra e os direitos cívicos nos Estados Unidos, juntando-se a We Insist! Freedom Now Suite, de Max Roach, Meditations on Integration (or For a Pair of Wire-Cutters), de Charles Mingus, Freedom Suite, de Sonny Rollins, Attica Blues, de Archie Shepp, e ao igualmente extenso Roots and Folklore: Episodes in the Development of American Folk Music, de John Carter.
Ao longo dos quatro CDs desta edição da Cuneiform, e sem preocupações cronológicas, Smith recapitula os grandes momentos da história da luta dos afro-americanos pela sua integração e contra o racismo. Títulos descritivos (não há narração nos materiais sonoros, pelo que estes ganham suma importância para identificar as situações) como “Thurgood Marshall and Brown Vs. Board of Education: A Dream of Equal Education, 1954” e “Rosa Parks and the Montgomery Bus Boycott, 381 Days” são indicativos do tipo de abordagem procurado, mas outras sequências dão ao todo, e às partes, tanto contexto (“John F. Kennedy's New Frontier and the Space Age, 1960”) como matéria para reflexão (“Democracy”) e para perspectivação do presente (“September 11th, 2001: A Memorial”).
Com Wadada Leo Smith está o seu Golden Quartet ampliado para quinteto, juntando-se a baterista Susie Ibarra aos habituais Anthony Davis, John Lindberg e Pheeroan akLaff, mais o Southwest Chamber Music Ensemble dirigido por Jeff von der Schmidt, um noneto de música erudita no qual se destacam como solistas, ou seja, a improvisar, o violinista Shalini Vijayan e o violoncelista Peter Jacobson. As peças com melhores resultados são aquelas em que o grupo de jazz e o ensemble de câmara trabalham em conjunto, mas outras há em que só surge um ou outro. A configuração instrumental indica à partida que esta é uma incursão pela chamada third stream, cruzando elementos jazzísticos e clássicos. Neste cenário, não estranha que a ponte entre os dois domínios seja estabelecida pelo pianista: ninguém melhor do que Davis para operar esse tipo de osmoses, ele que foi o autor das óperas “Amistad” e “The Life and Times of Malcolm X”.
Os jogos estabelecidos têm a virtude de evitar os compromissos. Se há uma rigorosa ordenação composicional, mais uma vez confirmando a qualidade da escrita de Smith, certo é que encontramos aqui, também, algum do jazz mais enérgico e livre que o antigo parceiro de Anthony Braxton e Leroy Jenkins tem assinado. Um exemplo muito concreto é a dramatização musical construída no já acima mencionado “Democracy”, em que este sistema político é metaforizado por uma interacção conflituosa entre os instrumentos e os papéis que adoptam.
Nem sempre o trompete de Wadada está presente, mas quando intervém faz toda a diferença, em muitos casos (sobretudo quando utiliza a surdina) denunciando a sua recente paixão pelo Miles Davis da transição para o período eléctrico. Passa por essa influência muita da caracterização cinematográfica de “Ten Freedom Summers” e esta tem feito com que o quádruplo seja comparado não com outras obras musicais, mas com um filme, “Shoah”, o documentário de Claude Lanzmann sobre o Holocausto. Se bem que, tal como admitido pelo próprio músico, a fonte de inspiração tenham sido as dez peças de teatro do “Pittsburgh Cycle” de August Wilson.
O que aqui vem levou 34 anos a construir, sendo o resultado, como diz Wadada Leo Smith, «das minhas buscas e reflexões no respeitante à história filosófica, social e política dos Estados Unidos da América». Não podia ser mais ambicioso o objectivo. O que fica é algo de portentoso, enorme, magnífico, mas escuta-se sem esforço, bastando apenas tempo e paciência. E porque haveria o prazer de ser instantâneo, como o café?