Algures no recinto de um festival Alive, os Homens da Luta lideravam um grupo que gritava “O povo, calado, será sempre enganado!” Verdade? Claro. Mas pode-se estar calado sem fechar a boca. Também se pode gritar slogans pantomineiros e vazios de conteúdo, guiados por personagens da TV, para parecer que nos estamos a rebelar contra alguma coisa. E lá andamos todos felizes a brincar aos “revolucionários”, com os bigodes e altifalantes “so pictoresque”. Algo semelhante foi dito por Capicua em entrevista publicada no Bodyspace há alguma semanas: “é difícil que se olhe para um imenso underground, bastante desprestigiado e conotado com as margens, como é o hip hop. É mais fácil e “divertido” ir buscar os Homens da Luta…” Para quê tanta insistência na mesma tecla? Porque “Rapressão” (ironia: sai pela Optimus) não é “fácil”, não é “divertido”, não é “chic”, não é “pop”. É um dos discos mais focados que vão ouvir este ano. Um disco que bate, não na mesma tecla, mas num piano que tem muitas, que formam um todo de revolta e exposição de injustiças e preconceitos.
Chullage não lança discos por dá cá aquela palha. Para aqueles, como eu próprio, que muito desejam ser expostos mais vezes ao seu talento, só resta esperar pela altura certa. “Rapressão” saiu “quando teve de saír”. Mas não se nota qualquer enferrujar. Logo para começar, “De Volta” avisa que não vai perder tempo com outros rappers. A guerra é contra “PSP, PJ e SIS”. Chullage mostra-se extremamente assertivo na cadência e nas rimas. A técnica está lá toda. Sílabas fortes e nítidas, encaixe perfeito entre frases, rimas magníficas acapella (em 3 faixas), voz autoritária, capacidade constante de prender a atenção para sabermos o que vai ser dito a seguir. Lembra-vos alguém? Só não há um ”comic sidekick”. Não há Flavor Flav. E não há o assalto sonoro da Bomb Squad. Há sim bom boom-bap, sintetizadores de olhos vermelhos (sim, é trocadilho com Red Eyes Gang), baixos soturnos, samples de José Afonso, Seu Jorge, Ferro Gaita, Last Poets, etc. Todos com uma missão a cumprir. Este é um disco de letras, mais do que um disco de “liricismo”. É um disco para denunciar que o 12 de Março “foi só mais um passeio de Sábado”. Que “eles choram pelas acções do PSI-20, o meu people chora pela refeição seguinte”, como na fabulosa e pungente “Já Não Dá”.
Tal como os Public Enemy fizeram nos seus melhores dias, também Chullage sabe como agarrar nos detritos da pop-culture para ilustrar as suas posições. “Média-Ocridade” faz o que diz no rótulo, falando da “pseudo-rebeldia” que é “a adrenalina dos betos”. E por todo o disco existem referências aos factores que, como é muito bem dito, distraem o “Zé Povinho”. Que o ajudam a olhar para uns como escumalha, e outros como respeitáveis doutores. “S.E.F. (Suplício de Estrangeiros e Fronteiras)” pega nos preconceitos que, quer queiramos quer não, são uma parte dessa cultura, e expõe uma cadeia de acontecimentos que liga pessoas de diversas origens. “G Também Ama” é uma chamada de consciência para aqueles que causam mal à sua própria comunidade. “R.E.G. (Resistência e Guerrilha)” é pegajosa e perfeita para abanar o pescoço, ao mesmo tempo que expõe o seu programa de intenções.
Dirão que isto são palavras escritas por um gajo que está “do lado de fora”. E têm toda a razão. Tal como outro grande disco de hip-hop, “A Árvore Criminal” de Halloween, foi empolado por muita gente que vive as emoções perigosas nele contidas em terceira mão. Nem todos os que se tornam fãs de discos que apelam à revolta têm que sofrer as agruras que eles denunciam. Mas aqui não há “One Love”, “Three Little Birds” ou “Could You Be Loved?” para fazer uma compilação ofuscatória e tocar com a guitarrinha a tiracolo na praia. “Rapressão” bate à porta e diz, com voz clara e forte, que ou estás com ele ou contra ele. Se houver justiça no mundo vai inflamar os neurónios, o pescoço e os braços de muitos.