Neneh Cherry e o trio The Thing fizeram um disco juntos. Soa estranho? Não deveria, pois a Sueca, embora conte com vários êxitos à escala global nos seus quase quarenta anos de carreira (quem não se lembra de "I've Got You Under My Skin" ou "Seven Seconds", com Youssou N'Dour?), nunca foi avessa à experimentação: aliás, foi aÃ, no perÃodo pós-punk dos anos oitenta em que tudo era permitido, que primeiro se ouviu falar dela - primeiro nos New Age Steppers, onde bebia da fonte dub, e de seguida nos Rip Rig & Panic, onde a energia punk se encontrava com o jazz. O jazz foi sempre, aliás, uma presença constante na vida da cantora, até por ser filha do lendário trompetista Don Cherry; e em The Cherry Thing esse lado é amplamente explorado, num disco onde conjuga de forma exemplar a sua inclinação pop e o pensamento outsider. Coadjuvada por Mats Gustafsson, Ingebrigt HÃ¥ker Flaten e Paal Nilssen-Love, num álbum principalmente de covers, encontramo-la, se não no seu pico de forma, muito lá perto.
Assim como os BadBadNotGood, até certo ponto, The Cherry Thing apresenta-se como uma mistura capaz de extravasar fronteiras e abrir as portas aos muitos desconhecedores do jazz. Até porque é um disco que consegue, nestes tempos de velocidade, fazer-nos parar para ouvir. Uma, outra, repetidas vezes: um medicamento para a ADD mais eficaz e menos custoso do que ritalina. E muito menos difÃcil de tragar, ainda que enraizado no free (não se assustem os leitores menos dados a esta vertente jazzÃstica). The Cherry Thing tem essa capacidade - benção - de ser simultaneamente disco para ouvidos mais formatados e outros mais aventureiros. É impossÃvel ouvir "Cashback", logo a abrir, e não pensar que, se houvesse justiça no mundo, poderia muito bem ser um hit gigante de rádio. É impossÃvel ouvir a versão de "Dirt", dos Stooges, e não encontrar todo um novo sofrimento, toda uma nova sensualidade, a qual não teria passado nunca pela mente de Iggy Pop há quarenta anos.
The Cherry Thing, desde a primeira vez que lhe deitamos os ouvidos em cima, estimula, conquista, como se nada mais houvesse sido lançado este ano. Ora incendiário, como em "Too Tough To Die" e "Dirt", ora deixando um amargo de alma, como em "Dream Baby Dream" (uma ironia extraordinária: cantada por Neneh Cherry soa muito mais suicida que na original dos... Suicide) e "What Reason Could I Give", ora simplesmente genial, como em "Accordion", onde a vemos entregar-se ao rap, de que igualmente tanto gosta, de MF Doom. Não, esta colaboração não é de todo estranha: estranhos somos nós, por nos termos praticamente esquecido de quão bela pode ser a voz de Cherry, e de quão punk pode ser um trio de jazz. E, já agora, de quão satisfatório é simplesmente parar para ouvir um disco. Soberbo, soberbo, soberbo...