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Yo La Tengo And Then Nothing Turned Itself Inside-Out

2000
Matador


Yo La Tengo é comparável a uma bússola discreta no bolso de cada músico com pretensões a indie rocker, a que mais cedo ou mais tarde se acede no anseio de estar lá, na vanguarda dos que já nada têm a provar. Cada álbum do trio de New Jersey prevê, assegura, reflecte.

É que por vezes a unidade de medida do rock não é apenas a quantidade de guitarras desfeitas em acessos de raiva ou amores de casas de banho rascas, mas a maturidade que permite que as guitarras ainda permaneçam carinhosamente tratadas depois de tantos anos. E que o amor surja por fim num registo confessional, cheio da tranquilidade de um quotidiano de muitos anos vividos no mesmo espaço. Afinal, depois de tanto tempo de YLT e vida conjugal, Ira Kaplan (voz e guitarra) e Georgia Hubley (voz e bateria) repousam silenciosamente a afeição e a cumplicidade de muitos anos em álbuns de muito maior controlo emocional. Com a eterna companhia de James McNew (baixo) a fazer de velinha, claro. Esvaziou o balão que continha a adrenalina que alimentava o noise dos álbuns anteriores, que continham uma energia muito à flor da pele - basta ouvir pérolas como "Sugarcube" ou "From a Motel 6" (de I Can Hear The Heart Beating as One e Painful, respectivamente), ou então o singular EP Little Honda, com versões de Beach Boys a Queen, para perceber as diferenças. A voz e a guitarra tornam-se agora mais lentos, ganham rugas, acompanham o vagar compassado da idade. São complacentes e resignados. Não violam, não mudam, não revolucionam. Constatam. Descansam do pelotão da frente e de dezanove anos da mais pura investigação sónica. Que deu nisto. Numa das mais marcantes bandas do nordeste americano.

Agora é tempo de agasalhos e lareira, mas não cessa a necessidade de carregar no botão do Overdrive. Abençoada "Cherry Chapstick" e seus acólitos feedbacks: em 77 minutos de And Then Nothing Turned Itself Inside-Out, é a única prova que os Yo La Tengo já foram uma banda de noise rock, mas isso não tem grande importância. Pedais de distorção à parte, todas as músicas transpiram um charme imenso e uma sensação de confidência que antes não existia. Sucedem-se pequenas histórias de amor embebidas numa decadência inócua, espécie de Picasso da fase azul mas em que temos a certeza que o final vai ser feliz. Como em "Our Way to Fall", por exemplo, onde se ameaça a certa altura uma incursão no monólogo triste para se acabar numa muito gentil canção de amor, amor puro e simples. O sussurro de Kaplan (assim como a voz de Georgia) é durante o álbum uma espécie de voz off permanente, como se os restantes instrumentos emprestassem apenas a ambiência necessária para encostar os lábios ao microfone e contar, palavra por palavra, tudo o que acontece nas relações entre as pessoas. E a conclusão a chegar depois de ouvir "Everyday" ou "From Black to Blue" é que eles continuam tão perdidos como antes, embora provavelmente com uma consciência maior da inalterável inabilidade que existe entre homens e mulheres, ou, se quisermos, entre seres humanos, e que transforma o amor numa corda volátil e contingente. Mas, ao mesmo tempo, não falta fascínio nas canções trémulas de And Then Nothing Turned Itself Inside-Out: por vezes sabe bem que o controlo fuja das nossa mãos e desarrume o nosso limbo. Assim, cada alvorada é certamente nova, e a procura aporética continua.

E é apenas isto, este álbum. Os YLT conseguem ser simples. Por vezes demasiado. Às histórias contadas falta fugir da bidimensionalidade a elas inerente, textual e musicalmente, e que transmite por vezes uma certa pobreza de recursos. Não existe princípio nem fim em cada música, dando a sensação que elas não chegam nunca a ser verdadeiramente concretizadas enquanto passaporte das conclusões a tirar após cada desencanto ou choro nocturno. As palavras podiam ser maiores - e exemplo extremo é "You Can Have It All". Por outro lado, "Madeline" e "Tired Hippo" são dois instantes escusados, menores, principalmente este último. Quanto a "Let's Save Tony Orlando's House", é uma inesperada e interessante alusão aos Simpsons. Os 17:41 de "Night Falls on Hoboken" também não evitam uma certa apatia, uma falta de dinâmica que nos diz que se cortassem alguns minutos provavelmente não repararíamos. No entanto, momentos como "Everyday", "Our Way to Fall", "The Crying of Lot G" ou "Tears Are in Your Eyes" superam qualquer dúvida sobre o que valem estes quarentões. Dificilmente nos desiludirão.

Dois anos antes da obra conceptual The Sounds of the Sounds of Science, que prova o que todos já sabiam - que os Yo La Tengo são uma banda muitíssimo mais inteligente e rica do que parecem à primeira audição -, este And Then Nothing Turned Itself Inside-Out sai da estrada dos primos Sonic Youth e segue sem pressas por um caminho que irá dar a Summer Sun, em 2003, e que afigura uma nova árvore geneológica. Para além dos Velvet Underground, adoptaram como pai um certo Brian Wilson. O Brian Wilson da gentileza do Verão, sim, e de confissões muitíssimo escondidas por trás de músicas que transpiram uma sensibilidade particular. Provavelmente os agasalhos e a lareira de que falava também se transmutam em cadeiras de praia e chapéus de palha, à sombra. Enquanto se conversa, canta, e o tempo escorre. Ou seja, enquanto se envelhece.


Nuno Cruz
19/10/2003