Tendo em conta tudo o que se passou, torna-se fácil esquecer o passado longĂnquo dos Black Dice embrenhados no lixo do Hardcore mais ruidoso. A magnificĂŞncia do incontornável Beaches & Canyons como ponto zero de algo que nunca se viria a repetir – como poderia, na verdade? “Things Will Never be the Same” Ă© profĂ©tico - mas que deixaria em aberto todo o mundo de possibilidades que a banda nova iorquina tem vindo a trilhar com uma determinação feĂ©rica apĂłs a saĂda do Hisham Baroocha. Com este Ăşltimo a levar as ideologias new age e as batidas pĂłs-tribais para Soft Circle, coube aos trĂŞs membros restantes – os manos Copeland e Aaron Warren – reinventar a orquestra de sons disconexos e indecifráveis numa lĂłgica de abstracção lĂşdica e continuamente intrigante.
Não deixa de ser curioso, portanto, que sem dar passos atrás em relação à escalada ou enterranço progressivo até ao anterior Repo, Mr. Impossible faça ressurgir alguma da energia pós-Hardcore – não confundir com o “género” desse nome – que permeava alguns dos lançamentos mais marginais da banda circa 2001/2. Numa realidade paralela onde Beaches & Canyons nunca tivesse existido – e o mundo seria muito, muito mais triste - Mr Impossible seria o nervo entre algo como Peace in the Valley/Ball e Creature Comfort. Embora este pensamento rebuscado não se permita a uma visão coerente sobre o enfoque de Mr. Impossible por força de toda experiência acumulada nos últimos anos, paira por aqui uma falsa agressividade e um som mais musculado – o punch da tarola, algumas vozes mais rasgadas, riffs, etc – ausentes das erupções benignas de “Manoman” ou “Glazin”.
Acto contĂnuo, Ă© tambĂ©m o álbum mais imediato da banda – descontando Load Blown como uma compilação de singles - assentando arraiais numa progressĂŁo mais ordeira, onde anteriormente se desconjuntavam ideias de lĂłgica difusa – e Repo era, apesar das falhas, um disco mais interessante do que muitos quiseram crer. Claro que banda ainda nĂŁo sucumbiu ao conformismo nem ingressou nas artes da canção – apesar do uso constante de vozes – e, para os mais temerários, existe ainda toda uma panĂłplia de sons alienĂ©igenas e melodias enviesadas. Condensados num caleidoscĂłpio mais vigoroso e, permita-se a extrapolação, memorável.
“Pigs” deixa logo essa ideia marcada, com uma melodia meio sacada Ă s primeiras notas de “Lucifer Sam” dos Pink Floyd – afinal de contas, tudo isto Ă© psicadelismo – a repercutir os estalos da batida, num call & response constante entre uma voz ultra-processada e uma guitarra herĂłica. Lá para meio, o ritmo acelera e surge uma daquelas melodias circulares que lhes sĂŁo habituais. “Rodriguez” está algures entre “Manoman” e “Motorcycle”, sem soar verdadeiramente a nenhuma delas. “The Jacks” conta atĂ© com power chords encharcados em fuzz, naquele que será o momento mais headbanger da banda em muito tempo – e quem já os viu pode prever como soará avassalador ao vivo. CaracterĂstica transversal a um disco que parece nascer no seio da banda com essa vivacidade do momento.
“Pigs” Ă© sintomática disso mesmo, enquanto versĂŁo psicadĂ©lico-lĂşdica de uns Suicide com direito a riff power pop, mas acaba por ser um dos momentos menos interessantes da banda na sua procura por algo mais tangĂvel. Num contraste de energia centrĂfuga com o downtempo de “Spy Vs. Spy” onde, novamente, a guitarra dá uma achega a um solo clássico. “Outer Body Drifter” Ă© o pseudo-hino dançável da banda – facção pĂłs-punk ou nĂŁo estivessem tido eles ligados Ă DFA – enquanto “Shithouse Drifter” leva a questionar porque nĂŁo fala mais frequentemente sobre os Mouse on Mars – tambĂ©m eles criadores admiráveis a fazer do experimentalismo algo divertido.
“Carnitas” Ă© o Ă©pico de oito minutos que conjuga todos os trejeitos de uma banda respeitada mas muito pouco ouvida, na realidade. Há sempre a lembrança de Beaches & Canyons, mas essa comparação já há muito deixou de fazer sentido, quando eles inventaram para si uma linguagem profundamente personalizada. Mr Impossible nĂŁo deixa de ser Black Dice no seu modus operandi, mas desta feita, com propĂłsitos mais vincados que deixam de lado aquela “estranheza pela estranheza” que por vezes se lhes colava. E como tal, um disco que sem forçar uma reinvenção inusitada nem restaurar a fĂ© na banda – porque esta nunca se perdeu – torna o regresso a ele constantemente aprazĂvel. Para alguĂ©m sem nada a provar, Ă© obra de respeito.