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Diabo na Cruz Roque Popular

2012
Mbari


SINOS TOCAM A REBATE

«Vinde todos a terreiro! Vinde já ouvir o novel tomo dos mais celebrados jograis do roque lusitano. Bernardo Barata, B Fachada, João Gil, João Pinheiro e Jorge Cruz voltaram a congregar esforços e inspiração. Entraram no estúdio com os seus instrumentos musicais e de lá saíram com uma dezena de novas cantigas. Criações que, na companhia das cantigas de Virou!, cruzarão Portugal (de Trás-os-Montes aos Algarves, do interior profundo ao litoral que viu partir os nossos navegadores) e, quiçá, as sete partidas deste mundo. E prometem fazer rodopiar as saias das donzelas mais formosas e abanar as cabeças de nobres e plebeus. Entrai na dança, siga a rusga, minha gente!!»

Esta tentativa (falhada) de intro em linguagem mais ou menos antiga serve apenas para vincar que raras vezes o rock cantado na língua de Camões terá estado tão próximo das raízes musicais portuguesas e do nosso imaginário colectivo. O génio de António Variações, bem o sabemos, uniu o Minho a Nova Iorque em composições inesquecíveis, mas fê-lo com uma sensibilidade muito mais pop. É fascinante como a energia do rock e a urgência do punk casam na perfeição com os ritmos tradicionais, as expressões populares – como “não morremos hoje nem casamos amanh㆖, os sons de foguetes e o chamamento do amolador. Tudo isto se encontra bem presente em Roque Popular, começando na garra destilada em "Bomba-Canção" ou "Baile na Eira" (as duas primeiras do disco e excelentes cartões-de-visita: tic-tac incendiário como um cocktail molotov e pogo dance para malhar no terreiro sem dó nem piedade) e desaguando na ilustração que Nuno Saraiva fez para a capa do disco. Bem ao centro da acção, uma figura remete-nos para a vertigem de London Calling (Paul Simonon a partir o seu baixo em pleno concerto) e para uma das mais icónicas imagens do punk, fazendo a síntese e a ponte entre os dois universos, num caso sério de alquimia inesperada: estamos na presença de música urbana feita com o pés bem assentes na nossa terra e com potência suficiente para abrir fendas profundas no solo mais resistente.

Mas este Roque Popular não é feito apenas de paisagens trepidantes; os seus horizontes são abertos, vastos como as planícies alentejanas. Nele cabem momentos mais calmos, como a melancólica "Luzia" ou "Fronteira" (referência explícita à emigração, que tem sido a senha e solução de vida para muitos portugueses nos últimos tempos – o que acaba, aliás, por retomar um certo fado lusitano a que se costuma chamar diáspora) ou radio friendly, como o single "Sete Preces", que já anda a rodar por aí. Se o som do amolador costuma anunciar chuva, no final da funky "Estrela da Serra" antecede o surgimento dos "Pioneiros", esquadrão de elite que persiste em desbravar sem receio terrenos desconhecidos, «sempre prontos a agarrar o mundo inteiro». "Chegaram os Santos" arrisca um ska bem dançável e que se poderá tornar um caso sério de diversão, tendo todos os elementos necessários para ser um hino festivo-casamenteiro já no inicio do próximo Verão - à atenção das comissões organizadoras dos arraiais populares… e não cobro um cêntimo pela dica. E "Siga a Rusga", num portento de ritmo, antes de se escrever o “Memorial dos Impotentesâ€, espécie de epitáfio agridoce inscrito sobre este Roque Popular.

O grande equilíbrio (entre momentos para acelerar por aí fora e repousar o corpo e a cabeça, músicas para pintar a manta e refrões cantaroláveis) é um dos pontos fortes deste disco. O palavrão que me ocorre para o classificar é Música Moderna Popular Portuguesa, com a energia do (punk) rock a lavrar bem fundo nas nossas raízes. Melhor ou pior do que o seu antecessor, Virou!? Essa poderá ser uma questão debatida ad nauseam, uma vez que se tratam de duas obras excepcionais, mas uma coisa parece certa e segura: Roque Popular pega no ponto em que os cinco rapazes tinham chegado no disco de estreia e dá passos em frente. E mesmo com este risco acrescido, pisa caminhos que o deverão levar a ouvidos muito variados, tornando Diabo na Cruz um nome familiar a bastante mais gente.


Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
16/04/2011