Não obstante todas as suas caracterÃsticas técnicas facilmente identificáveis - riffs por norma pesados, influências das ragas indianas e outras músicas do mundo, letras, quando as há, imbuÃdas de simbolismo e surrealismo -, uma dúvida, sobretudo filosófica, persiste ao escutarmos quer os discos mais antigos e laureados (Are You Experienced?, Surrealistic Pillow, Welcome To Sky Valley), quer os mais recentes do género (como Rated O ou este mesmo Titans). Em que é que consiste o rock verdadeiramente psicadélico e/ou stoner? Deveremos encará-lo como apenas mais um género musical com raÃzes variadas, uma evolução natural do rock n´ roll original que, pelo contacto/contágio com outras culturas, foi inevitavelmente forçado a progredir? Ou, virtude do significado mÃstico que muitos atribuem à s drogas alucinogénicas, da sua utilização para fins shamânicos, e cuja disseminação está igualmente na génese do aparecimento do estilo nos anos sessenta da geração hippie, deveremos vê-lo como algo mais, um abrir das portas da percepção não só musical, um acto espiritual em si?
A pergunta é complexa, e variará de banda para banda. No caso dos Black Bombaim, por serem fruto do novo milénio, seremos tentados a afirmar que a sua música é "apenas" (palavra absurda, mas exacta) um tributo a todos os bons discos que cresceram a ouvir. Mas isso só eles o poderão responder, e possivelmente nem eles próprios o saberão fazer com certezas. O que é certo em Titans é o sentido de urgência que o perpassa, um pedido, que ressoa não só nos riffs que aqui se ouvem mas também no número titânico (passe o trocadilho) de excelentes músicos instados a participar no disco, para que se dê um despertar colectivo de consciências. Não que os Black Bombaim, por si, precisem de provar algo - Saturdays And Space Travels, juntamente com o número sem fim de concertos arrebatadores, já os havia indicado como um valor mais do que seguro do rock made in Portugal.
Mas Titans é mais do que uma nacionalidade ou um nome, coisas que, no fundo, são anti-natura. É uma inscrição feita a talha de foice no Património Musical da Humanidade. Os Black Bombaim olharam para o panteão, cercaram-no, incendiaram-no. No final restaram as ruÃnas, o sangue, o suor, e um disco para ombrear com qualquer uma das obras que já lá se encontravam. Daà que, na primeira faixa, Adolfo Luxúria Canibal pareça estar não a instar contra o grande capital, mas a encorajar os próprios Bombaim no seu ataque cerrado:
CAMINHA SEM DOR
NEM QUEBRANTO PELOS VULTOS EM FLOR
QUE A GUERRA ABATE AO TEU REDOR
TITÃ
TITÃ
ÉS UM TITÃ
De uma perspectiva puramente cÃnica (leia-se: idiota), gabe-se a coragem que os barcelenses tiveram ao lançar, na idade da internet em que a maioria da população (leia-se: hipsters) que dedica algum tempo à música não tem paciência (leia-se: sofre de ADHD) para escutar álbuns com mais de trinta minutos (leia-se: à s vezes há que detestar o punk), um álbum com pouco mais de uma hora de duração em que apontar exactamente um ponto alto é uma tarefa, mais do que difÃcil, inútil. Tentemos: o momento, na primeira faixa, em que, imediatamente a seguir a uma cavalgada acelerada, ALC inicia a sua diatribe; Tiago Jónatas a trazer o psicadelismo kraut para a equação; o saxofone sleazy de Steve Mackay a colocar alguma água na fervura; e o jogo de guitarra tanto de Guilherme Canhão como de Isaiah Mitchell. Mas isto são pequenas aleatoriedades que aqui e ali saltam ao ouvido; em Titans, do omnipresente baixo à secção rÃtmica passando, claro, pelo ruÃdo delicioso de uma guitarra a ferver, tudo é demasiado cativante para nos limitarmos a seleccionar trechos dos quatro temas que o compõem.
Quatro temas esses que poderiam muito bem ter sido mini-LPs em si, mas, a bem do equilÃbrio do planeta, os Black Bombaim decidiram não deixar o espÃrito jam à solta. Deixaram a agressividade, o delÃrio absoluto do rock, e um objecto de verdadeiro culto para quem conseguir deitar as mãos a uma cópia - seja digital, seja fÃsica: este é mesmo daqueles discos soberbos em que o formato não interessa para absolutamente nada. Posto isto, regressamos à questão original. O que é o rock psicadélico? Um modo de chegar a um estado alucinatório? Com Titans, a única visão que teremos é a de três gigantes destruindo tudo à sua passagem e sentando-se no trono celestial que passou a ser deles pela força... um disco que é uma vitória para todos os que estiveram envolvidos nesta guerra. Resta-nos a nós, mortais, esperar que tenham piedade de nós.