Nascida muito recentemente em Lisboa da uniĂŁo de esforços entre gentes respeitáveis da promotora Filho Ăšnico e da Flur, a PrĂncipe Ă© uma editora dedicada Ă documentação e divulgação daquilo que de mais urgente se vai passando na mĂşsica de dança – seja ela techno, house, kuduro e demais miscigenações incatalogáveis – feita no burgo. Empreitada de respeito num campo de acção que, e apesar de esforços continuados de editoras como a Iberia ou (mais recentemente) a One Eyed Jacks, permanece ainda numa esfera algo insular para quem se encontra fora do epicentro dos acontecimentos. Capaz de açambarcar o gueto e o condomĂnio de luxo ao ritmo de um banger a PrĂncipe estreia-se hoje com duas edições respeitáveis que, lançando pistas para essa identidade multiforme, abrem as hostilidades com toda uma boa onda = bom gosto que urge ir acompanhando.
Quando, há uns anos atrás, “Yah” rebentou um pouco por todo o lado, seria natural especular que toda essa atenção derivasse num digging em torno do gĂ©nero para alĂ©m das piadas fáceis de gente como o HĂ©lder ou o Sebem. Manifestação mais visĂvel de algo que fervilhava secretamente, os Buraka Som Sistema serviam como a constatação mais Ăłbvia, se bem que pouco elucidativa e estupidamente limitada (havia ali um crossover algo plástico), de um perĂodo efusivo tanto aqui como nas urbes angolanas. Um pseudo-boom protagonizado aqui tĂŁo pertinho por nomes como os N´Gapas, Ritchaz & Keke e Kotalume (entretanto hibernados/desaparecidos) e a ter rĂ©plica nos bairros de Luanda atravĂ©s de gente como os Lambas, Vagalume ou DJ Znobia. Tudo parecia confluir nessa dança e estávamos todos muito mais felizes, mas passado algum tempo Ă© inevitável constatar um torpor geral no gĂ©nero (a militância dos beefs enquanto palco primordial ou o sectarismo preponderante da “cena” sĂŁo algumas das razões). AtĂ© porque, para alĂ©m de um site de partilha como o (adormecido) Kuduromatic, a Akwaaba e alguns artigos esporádicos no Ghetto Palms pouco se tem debatido/pensado/difundido neste campo. E esta crĂtica nĂŁo Ă© o espaço indicado para isso.
Ainda assim, e porque estamos longe de ver a coisa morrer (apesar de algumas indicações em contrário, algo precipitadas), o kuduro continua ser palco para um contigente de produtores (e por arrasto Ăłbvio, mc´s) revolverem os cĂłdigos genĂ©ticos da mĂşsica africana. Nascido nesse epicentro de acção, o DJ Marfox tem-se desde sempre afirmado como um dos principais obreiros nos avanços formais, estilĂsticos e sociolĂłgicos do gĂ©nero, atravĂ©s de clássicos subterrâneos como “MĂŁe Gorda” ou “Funk em Kuduro” e em inĂşmeros mp3´s dispersos (ouça-se a compilação DJ´s Di Guetto para comprovar tudo isso). Uma escolha mais do que adequada para os quadros da PrĂncipe, de um nome que tem vindo a reescrever continuamente as regras do gĂ©nero com profunda identidade.
Enquanto manifesto de intenções, Eu Sei Quem Sou Ă© revelação disso mesmo. Quatro malhas onde a batida Ă© suprema, numa intricada rede de percussões para um impacto fĂsico/anĂmico totalizante. “Eu Sei Quem Sou” a enfatizar todo o ambiente de festa improvisada, assentando arraiais nas matrizes do gĂ©nero e conduzindo esse grito por uma daquelas melodias infecciosas que associamos logo ao DJ santomense. “BIT Binary” dispensa os apetrechos melĂłdicos para assumir a batida como peça fulcral, pecando talvez por essa obstinação quando observada numa luz que nĂŁo a da pista de dança (aqui entenda-se qualquer espaço onde a festa aconteça).
Apesar de todo o valor intrĂsseco a essas duas malhas, Ă© no lado B que se encontram os momentos mais fascinantes de Eu Sei Quem Sou. “Mitologia” adopta uma faceta quase hi-tech (mas nĂŁo assĂ©ptica) no modo como se deixa levar para territĂłrios mais alienantes. O reverb a aprofundar todo um sentimento ameaçador - que tem nos estalos de sintetizador que surgem em fundo o seu catalisador principal – num banger negro que sujeita a dança Ă paranĂłia num comprimento de onda simbĂłlico com as produções mais galvanizadoras do Grime primordial ("Pow" obviamente, mas tambĂ©m coisas como "Raw 2 da Core" ou as primeiras produções do Skepta). “Pensamentos” Ă© ainda mais surpreendente na progressĂŁo, com os resquĂcios do UK Garage numa via misteriosa que parecia perdida ali pelo primeiro álbum dos Horsepower Productions ou algumas remixes de Zed Bias circa 2002, e que acto contĂnuo carregam toda a imprevisibilidade das sĂncopes 2-step/soca das dub mixes de Bump & Flex dessa altura, numa visĂŁo kudurista.
Saltando para o segundo disco, nĂŁo deixa de ser com ironia trágica que WEO / Chunk Hiss seja editado alguns dias depois da morte do grande AntĂłnio Cunha. Um dos principais propulsores da mĂşsica de dança em Portugal atravĂ©s da mĂtica Kaos - ao qual aproveitamos para deixar um sentido R.I.P. - cujo legado assombra este disco de modo quase beatĂfico. Mais do que um acesso revisionista/reverente, o que estreia dos Photonz na recĂ©m-criada PrĂncipe propõe Ă© uma interpretação profundamente personalizada e com todo o carinho possĂvel desses tempos áureos da rave no inĂcio dos 90´s que os prĂłprios nunca viveram, mas cuja paixĂŁo perdura subliminamente no aqui e agora que tĂŞm vindo a criar de forma fascinante. Depois dessa declaração de amor que foi a mix para a Fact portuguesa e uma tangente a todo esse dramatismo eufĂłrico com “Xabregas”, estas duas malhas aprofundam essa mesma linhagem sem desvirtuar as propriedades do duo lisboeta.
DĂptico colossal, tanto “WEO” como “Chunk Hiss” se estendem para a barreira dos 10 minutos num contĂnuo impoluto de refracções várias sobre o lado mais glorificante do techno : a batida electrizante do jack a sustentar a inundação de bleeps e efeitos, numa explosĂŁo iminente que se perpetua progressivamente no seu prĂłprio movimento. CĂłdigo genĂ©tico partilhado que se diferencia nos seus propĂłsitos, com “WEO” a soar mais espacial e extática por comparação. Os gritos enquanto chamamento galvanizador sobre uma torrente harmĂłnica quase espectral no modo como parece vir de nenhum lado e chegar a todo o lado em simultâneo, com a devida noção de espaço que estas coisas pedem.
Tendo em conta a poeira cĂłsmica que a precedeu, “Chunk Hiss” acaba por se assumir mais terrena, nem que fosse pelos sons de gaivotas e ondas que “assombram” a malha, como que a projectar alguma realidade num paraĂso que nĂŁo existe. CaleidoscĂłpica no modo como vai sobrepondo diversas coordenadas melĂłdicas e rĂtmicas num dilema psicotrĂłpico, inventa toda uma nova noção de festa estival. Ou seja, mais um tomo majestoso de um work in progress sempre premente por parte dos Photonz.