Acompanhando o desenrolar dos acontecimentos atĂ© agora, Ă© facilmente observável que o projecto de Joe Knight Ă©, acima de tudo, feito de viagens. NĂŁo necessariamente pela via da auto-descoberta ou da acumulação cultural na bagagem, porque uma ida Ă mercearia pode ser tĂŁo reveladora como um passeio pelos Andes se o mindset estiver disposto a esses delĂrios. Ou talvez seja o exagero natural do tĂ©dio a potenciar tudo isso, quando o movimento se torna um fim em si mesmo e o cĂ©rebro encerra todo um fascĂnio em torno da viagem per se que ultrapassa largamente o sentimento de chegada. Os cĂrculos de Suburban Tours a reinventarem “espaços mentais onde a realidade fĂsica se confunde com o fluxo televisivo” eram disso mesmo exemplo maravilhoso. Street Smell (a realidade) ou Europe on TV (a evocação) tambĂ©m, de modo mais tentativo. AtĂ© houve Concorde Breakfast para fazer disso tudo rotina de negĂłcios (sei lá, o Up in the Air trata desse assunto com alguma piada). Culpe-se o prĂłprio Knight por toda a carga imagĂ©tica, e Pan Am Stories incorre, desde logo no tĂtulo, num contĂnuo narrativo.
Se Suburban Tours encerrava num lifestyle suburbano toda uma noção difusa em torno do escapismo (fosse ele mental, factual ou mesmo sociológico), Pan Am Stories é, por comparação, um mosaico panorâmico em torno dessa mesma premissa. Se quisermos tomar uma linhagem ainda mais romanceada, é como se Pan Am Stories recomeçasse onde o disco anterior tinha ficado. As “Airport Lights” da última malha a profetizarem o abandono dos subúrbios. Ou apenas a reivindicação de um desejo latente que alimenta tudo isto. A máxima de home is where your heart is a apanhar com o deslumbramento fractal da televisão (adoptemos uma postura pré-Web para contexto nostálgico) e, por conseguinte, a tornar-se uma espécie de ”só estou bem onde não estou” igualmente redundante, mas eficaz.
Dada a maior dispersão de coordenadas dispostas, Pan Am Stories é um disco mais ambicioso e até mesmo psicadélico do que o predecessor. Espelhado desde logo no facto de se tratar de um disco duplo na sua versão em vinil que, sem peneirices, calcorreia pelas mesmas linhas condutoras até uma linguagem personalizada e que envergonha as dezenas de chillers e gazers que se limitam a reciclar sonhos alheios. Continuam a ecoar os rendilhados etéreos do Robin Guthrie, as produções do Nile Rodgers, o dad rock enviesado do Todd Rundgren, as bso's de teen movies como Gregory's Girl ou a Miami como vista em toda a sua coolness em Miami Vice e no artificialismo de CSI, num pout pourri de quem não anda para aà a atirar barro à parede. Antes, a propor um canal natural para a confluência de referências aparentemente dispersas, mas sujeitas a um filtro comum que as reorganiza à velocidade do zapping e do tunning.
Ao longo de mais de uma hora, Pan Am Stories deixa de lado as vignettes expressivas de coisas como “Dome City” para lhes conceder um espaço no centro das canções, com estas a dispararem em direcções mais surpreendentes do que os cristais truncados do ano passado. O que nĂŁo será surpreendente para alguĂ©m familiarizado com as colagens dos primĂłrdios, mas poderá constituir um primeiro entrave para gente mais dada Ă ADD de feitio cancioneiro. Estes Ăşltimos terĂŁo no dĂptico “Zombies” (“Day” e “Night”) ou “Bronze Casket” motivos mais do que suficientes para aguentar tranquilamente atĂ© as solangas de guitarra que dĂŁo Ă s canções aquele charme Crazy Horse sem se perderem num noodling interminável.
Como marca autoral desse outro lado mais expansivo, “Zeke's Dream” Ă© um Ă©pico de 13 minutos que vai encandeando diversos momentos numa lĂłgica de mixtape rafeira feita com todo o carinho. A batida motorik em media-res que vai adensando para sucumbir perante passadas mais lentas e vozes indecifráveis e descambar numa versĂŁo lo-fi dos Pell Mell de Flow e Interstate (banda atĂpica da SST que tinha, tambĂ©m, a viagem em pano de fundo). Há ainda espaço para sintetizadores da escola Carpenter e um regresso ao soft rock drogado. Farinha de um mesmo saco que Ă©, afinal de contas, a memĂłria do prĂłprio Knight.
Temas como “Jane's Well” ou “The Mule” relembram atĂ© o encaixe harmĂłnico simples de uns Galaxie 500 menos cristalinos. O Ăşltimo numa toada mais dolente, como se estes nĂŁo fossem capazes de sonhar alĂ©m do pardieiro da sala de ensaios. O primeiro deixando-se guiar pelo daydreaming numa leveza crepuscular, que assume contornos mais preguiçosos nesse dejá vu perfeito que Ă© “Khymber Pass”. Malhas que partem sempre de sequĂŞncias de acordes simples, e fazem disso o campo lexical para irem encandeando pequenos acontecimentos (ecos, vozes e solos como poucos ousam fazer hoje em dia) que levem a ideia base a condensar sem nunca chegar a uma conclusĂŁo lĂłgica/abrupta. O final possĂvel.
Tendo em conta a sua geografia, Pan Am Stories nunca poderia ser tĂŁo memorável quanto Suburban Tours. Nem parece ser esse o seu propĂłsito. Talvez esse deslocamento seja apenas Joe Knight a tentar calar toda a conversa em torno de ambientes, arredores e paisagens quando se aborda a sua mĂşsica, mas quem dá tĂtulos como “Conversation on the Jet Stream” Ă s suas mĂşsicas está-se a pĂ´r mesmo a jeito para apanhar com discursos ĂĽber-imagĂ©ticos como este. Pode atĂ© ser uma tentativa de fazer o seu Something / Anything. Qualquer que sejam as razões, estas foram inteligentemente condensadas para que Pan Am Stories nunca se torne auto-indulgente. E, em havendo tempo, cada vez mais essencial.