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Nico Chelsea Girl

1967
Polydor


Uma noite escura, dois pedaços de melodia. Uma voz que arrepia e nos devolve ao ventre soturno daquela cidade mal iluminada. Aquele espaço vago da memĂłria dos sonhos, do esquecimento dos dias. Nico habita um buraco negro, uma subcave fria e hĂșmida. As palavras que os seus lĂĄbios soltam acompanham os passos inseguros nas ruas sujas, nas madrugadas vĂ­treas de esvaziamento da razĂŁo. Os olhos vertem notas perdidas, sinfonias compostas Ă  chama de uma vela gasta. As suas cançÔes sĂŁo como folhas de Outono de cores toscas. O fascĂ­nio pela sua mĂșsica Ă© um ingresso no precipĂ­cio. É um risco traçado por um pedaço de giz na estrada intemporal, sons derramados contra a janela que dĂĄ para o quarteirĂŁo onde caem as primeiras chuvas. Um jogo de contrastes e horrores, de silĂȘncios absurdos e ensurdecedores.

De seu nome Christa PĂ€ffgen, nascida em 1938 em Cologne, na Alemanha, Nico veio a tornar-se numa das mais eminentes sombras do rock. Sem nunca conseguir ocupar um lugar de destaque ainda em vida, faz-se acompanhar de figuras importantes debaixo dos lençóis ou atravĂ©s de relaçÔes mais profissionais. Paradoxal e intensa, Nico abraça as trevas, delas colhe ensinamentos e cobre de negro as suas composiçÔes, circuitos fechados na geografia da mente. Individualista e sem assumir compromissos, assina registos notĂĄveis de maior influĂȘncia apenas quando o seu nome para sempre ficou inscrito na mĂĄrmore fria. De supermodelo da haute couture europeia a actriz em “La Dolce Vita” de Fellini e mĂŁe de um filho de Alain Delon, Nico faz-se notar junto de Andrew Loog Oldham, entĂŁo manager dos Rolling Stones, que lhe dĂĄ a possibilidade de gravar para a sua editora Immediate. Corria o ano de 1965. Mas o single daĂ­ resultante, que contava com Brian Jones e Jimmy Page nas guitarras, nĂŁo conseguiu apreço comercial nem da crĂ­tica. Mais tarde, em ‘These Days’, Nico viria a cantar “please don’t confront me with my failures, I had not forgotten them”. Pouco tempo depois, muda-se para Nova Iorque, onde Andy Warhol lhe assegura uma presença residual no seio dos Velvet Underground.

Abandonando o projecto, lança-se a solo e compĂ”e este “Chelsea Girl” com um mapa sonoro algures no folk rock e com a colaboração de Jackson Browne, Lou Reed e John Cale. Depois, Ă© accionada a misturadora do tempo que se encarrega de fazer Nico mergulhar em ediçÔes irregulares, composiçÔes-fantasma, um trabalho lĂ­rico impenetrĂĄvel e, irremediavelmente, nas malhas da droga e de uma personalidade acidentada. “Camera Obscura” acaba por ser o trabalho de estĂșdio que ainda consegue respirar alguma coerĂȘncia. Em 1988, Nico morre em Ibiza, vĂ­tima de uma hemorragia cerebral.

No conjunto, “Chelsea Girl” Ă© o seu disco mais visionĂĄrio, mas mais perecĂ­vel tambĂ©m. A demanda do ParaĂ­so no obscurantismo das suas letras Ă© uma epopeia dolorosa, que insinua a morte a cada passagem. Uma manta de retalhos acĂșsticos em que inflexĂ”es sonoras e de voz dĂŁo Ă  costa, criando jornadas introspectivas e pictĂłricas como em ‘The Fairest of the Seasons’ ou ‘Somewhere There’s a Feather’. Os arranjos minimalistas e a reduzida secção de cordas tornam quase imperceptĂ­vel mas coberta de charme a recriação de ‘I’ll Keep It With Mine’ de Bob Dylan. Em ‘Wrap Your Troubles in Dreams’ de Lou Reed, hĂĄ um desejo de criação de um ponto de fuga, um escape artĂ­stico polvilhado de referĂȘncias tradicionais. É, talvez, o tema mais luminoso num disco que Ă© uma alegoria da caverna, ora ameaçadora ora fugidia, mas sempre distinta. Este disco evocativo da memĂłria de Nico serve para lamber as feridas de uma vida. De uma existĂȘncia perfurada pela nocturama em que a sua mĂșsica se enredou.


Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com
03/08/2003