bodyspace.net


Beyoncé 4

2011
Columbia


Felizmente e como seria mais ou menos expectável, “Run the World (Girls)†tem vindo a cair no esquecimento colectivo. Em toda a sua inutilidade, o primeiro single para o quarto álbum de originais da Beyoncé tratou-se de um wake up call enganador no modo como escancarava com o suposto stardom dela recorrendo a uma afirmação de superioridade feminina (contra o qual não haveria muito a refutar, per se) tão vazia no conteúdo como na forma (o recurso a “Pon di Floor†está mais do que estafado). Um flop justificado que no alinhamento de 4 ficou remetido para o final, como se de uma faixa bónus desprestigiante se tratasse. Que é o único modo de a encarar.

Ao contrário do que seria esperado, depois do statement de maturidade falhado nas ambições conceptuais de I Am...Sasha Fierce, 4 não surge num qualquer contínuo narrativo simbólico de afirmação da B enquanto “artista sériaâ€. Mesmo que para todos os efeitos, essa imagem seja projectada superficialmente, não faz grande alarido disso mesmo, acabando por assumir a persona de um modo natural. Como se aquela personalidade intangível, pejada de platitudes, já não se visse forçada a criar um distanciamento emocional tão intransigente para se assumirem essas mesmas com uma casualidade muito mais reveladora. A pessoa e a artista num mesmo plano de conforto, sem a necessidade de uma exposição flagrante do seu papel de estrela.

Talvez por todas as condicionantes dessa tranquilidade, 4 surge como um disco confortável com a sua existência, imune às pressões externas da fama e todo um lifestyle impossível que isso possa acarretar. Uma segurança que permite ignorar o bandwagon pós-Guetta, enquanto via para algo comercialmente bem sucedido mas inócuo. E também evidente no modo como a B já não precisa de recorrer constantemente aos trejeitos histriónicos (e gratuitos) do passado para fazer valer as suas notórias capacidades vocais, permitindo-lhe, pela primeira vez, conduzir as baladas e malhas mid-tempo, que constituem o cerne do disco, de um modo que até agora sempre se tinha escondido atrás de uma névoa de vulnerabilidade sabotadora. Começar o disco com uma power ballad como “1+1†é prova cabal de todos estes pressupostos. Mesmo que o factor OMFG! da malha (apesar de todas as suas qualidades) esteja nessa contextualização. Como se fosse um prelúdio (as in aviso) para um disco sem um único single óbvio, mas de uma coerência assinalável.

Os arpejos de “1+1†dão lugar ao tom soturno do sintetizador de “I Careâ€, antes do crescendo emocional de um refrão que, mais à frente, tem réplica grandiosa num duo em uníssono da voz da B com um solo de guitarra daqueles que escalam montanhas. Em contraponto com a subtileza de uma “I Miss You†(com mão do Frank Ocean) que sem chegar a lugar nenhum, é reclusa digna da placidez. “Best I Never Had†apela a uma certa familiaridade sonora que fez dela a escolha possível para segundo single, numa malha conduzida pelo piano e de refrão cantado a pleno pulmões, com o coro a exaltar â€Best Thing I Never Had†e novo solo de guitarra em fundo. Depois disto, “Party†quebra com a continuidade, naquela que é a segunda pior malha do disco. Throwback ao R&B dos anos 90, com sample de Slick Rick e um verso ridículo do Kanye West (â€We got the swag so she drippin' Swaguâ€), é uma canção preguiçosa que, sem ser ofensiva, poderia muito bem ter ficado de fora de 4.

Fluidez que se vem a repor com “Rather Die Young†e “Start Overâ€, antes do brilhantismo de “Love On Topâ€. Classicismo bem swingante (pense-se um pouco na irmã Solange, mas sem a excentricidade desta) que vai crescendo subtilmente com recurso a constantes mudanças de tom, às quais a Beyoncé vai respondendo num acerto harmónico indelével. Fazendo a passagem para os momentos mais upbeat do álbum (curiosamente, remetidos para o final). “Countdown†consegue com destreza alinhar sopros e percussão caribeña sem se fazer ao Dancehall de modo promíscuo, antes sugerindo uma associação sensorial que transpira para “End Of Timeâ€. Que consegue, com recursos semelhantes, fazer bem tudo aquilo que em “Run the World (Girls)†falhou. Nomeadamente, a escrita de uma canção. “I Was Here†fecha o círculo, como quem regressa à casa de partida. E que “Run the World (Girls)†é mesmo para esquecer.

E sem grandes confrontos estilísticos ou truques de produção, 4 será, muito provavelmente o melhor álbum da Beyoncé até hoje (com algumas reservas, pela proximidade, em relação a B'day). Faz-se valer de boas canções (cada vez mais aquilo que interessa) e de uma voz que sabe retirar o melhor delas. Mais uma mostra, e com todas as suas diferenças (contextuais, formais, pessoais), de que são discos como Back To Me da Fantasia ou Kandi Koated da Kandi que fazem do R&B um género tão vital, depois do inevitável esgotamento tecnológico. E que nos fazem acreditar que são mesmo elas que mandam neste Mundo.


Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
30/06/2011