Depois de ter feito justiça ao imponente legado dos Virgo (aka Virgo Four) com a reedição do seu álbum homĂłnimo de 1989 no ano passado, a Rush Hour continua a exercer de modo digno um papel benfeitor ao resgatar dos cofres do duo pĂ©rolas que permaneciam atĂ© hoje na obscuridade. Uma tarefa hercĂşlea, que reuniu numa opulenta caixa 5 LP's correspondentes a 30 malhas nunca editadas do perĂodo entre 1984 e 1990, e que merecem hoje e em qualquer altura a devida reverĂŞncia, sem acessos saudosistas. Peça magnânima que se vĂŞ beneficiada, em parte, por uma edição em CD que reduz para metade o fluxo criativo em bruto, deixando de lado algum do filler normal nestas escavações primordiais, onde o essencial dá tambĂ©m lugar ao tentativo e vestigial. NĂŁo sendo perfeito, acaba por ser mais revelador do brilhantismo que Eric Lewis e Merwyn Sanders atingiram para alĂ©m de clássicos como “Take me Higher”.
Seja encarada como uma louvável estratĂ©gia de marketing ou meramente uma questĂŁo timing oportuno, esta edição surge numa altura em que a herança da House de Chicago e sua variação ácida, como glorificada pelos clássicos da Trax, tem vindo a ser redescoberta em inusitadas pistas. Estas, tanto passam pela exploração nevrálgica das viagens mais recentes de Stellar Om Source ou “Your Words Matter” do Ramadanman, como pelos ecos difusos dos Hype Williams ou Teengirl Fantasy, num contĂnuo cada vez mais refractado da consciĂŞncia tomada em 2009 por Terre Thaemlitz enquanto DJ Sprinkles nesse colosso que foi Midtown 120 Blues. Ou como a influĂŞncia de “Your Love” e “Acid Tracks” deixou de estar assente em coordenadas Ăłbvias que conduzissem ao pastiche revisionista, para dispersar os sons da TB-303 fora da militância.
Parte integrante do valioso patrimĂłnio da mĂtica editora de Chicago, estes gajos estavam lá quando “On and On” de Jamie Saunders explodiu e todo um mundo de possibilidades palpitava nos sintetizadores e caixas de ritmos state of the art emergentes. Ao longo de Resurrection sente-se todo esse fervor que advĂ©m do desconhecido, embutido num sentimento de exploração constante de uma realidade que estava, nesse momento, a tomar forma. Uma realidade que faz, agora, todo o sentido e afastam de Ressurection qualquer ideia de que se possa tratar de um postal nostálgico truncado no tempo. É mĂşsica de procura constante que, pelo caminho, vai criando as suas prĂłprias referĂŞncias.
Sendo inegável que existem alguns momentos deambulantes, prenhes de ideias mal amanhadas (“White Smoke”) e experimentação lĂşdica (“Boing”), que efectivamente se acercam do vazio, todas estas pontas soltas acabam por ter o seu devido lugar contextual nesta cartografia. Mesmo que a sua necessidade possa ser discutĂvel quando este CD Ă© já uma adaptação de Resurrection ao formato greatest hits. Pode-se atĂ© clamar um paralelo com uma banda como os Excepter (um dos nomes vindos do subterfĂşgio que, desde logo, compreendeu a importância de tudo isto), que fazem das suas excursões a matĂ©ria para um mosaico mais revelador do que os seus retalhos.
Comparação algo rebuscada, mas assertiva no seu deslocamento conjectural, quando “Silence” ou “Crayon Box” partilham com estes Ăşltimos aquele espaço ligeiramente desconcertante que faz da alienação dança (e vice-versa). Tangencial a esta refutação, tambĂ©m a ligação ao Kraut se faz sentir, de modo clarividente, na autobahn de “The Mop” e nesse presciente dos Mouse on Mars que Ă© “Moskaw”. Sendo que esta Ăşltima pode tambĂ©m ser uma referĂŞncia discreta a “Moskow Diskow” dos Telex, pelo uso do phaser na batida, descobre-se o contĂnuo que faz da Disco uma sombra presidencial. O hedonismo que em “It's a Crime” assume uma posição socialmente interventiva ao som de teclados cortantes e de “It’s a crime, gotta go on the ground”.
A paranóia urbana latente em “Look Into Your Eyes”, evocando nos sintetizadores baços a melodia de “Blue Monday” que é, em toda a sua entropia, a força motriz para o escapismo hipnótico de “In the Valley”. House rarefeito em câmara lenta, feito de ecos que se escapam a uma linha melódica plácida e que levam à melancolia suada de “Sex”. Primeiro exemplo notável em Ressurection daquela nostalgia dorida que surge do vazio de um momento que nunca aconteceu, como epitomizado no mais-que-clássico “It's You” de ESP e perpetuado hoje em dia através de coisas como a remistura da “Fireworks” pelo Deadboy.
Neste último ponto, e apesar de belos momentos como “Forever Yours” ou “I Have Always Wanted”, nada ao longo destes 80 minutos consegue atingir o impacto emocional de “Let the Music Play”. Tecnicamente impressionante naquela indecisão natural de um género ainda por mapear devidamente, “Let the Music Play” poderia até ser alinhado com um hino 2-step como a remistura de “My Desire” pelos Dreem Teem, não fosse o 4/4 subliminar relembrar-nos que ainda estávamos a uns 10 anos de lá chegar. Mas é no plano sensitivo que tudo ocorre, condensando de forma perfeita aquele sentimento que acorre ao final de uma noite pejada de esperanças que parecem cada vez mais infundadas. Uma réstia que perdura na voz que repete ”Don't let the music stop”.
Quando chegam as ambiências etéreas de “Deep Blue”, mesmo no final deste endurance, todos sabem que a música tem inevitavelmente de parar. Mas se esta pôde começar, com mais de 20 anos de atraso, é sinal que há ainda muita coisa que ainda não teve uma janela de oportunidade para existir. As maravilhas encerradas em Resurrection já escaparam a esse fatalismo. Agradeça-se esta oportunidade como se de um pequeno milagre se tratasse.