Num meio tĂŁo dado Ă documentação em tempo real do crescimento e/ou desvio artĂstico das suas personagens principais como o R'n'B, um silĂȘncio discogrĂĄfico de uma dĂ©cada Ă© um capricho de âestrelaâ. Ou de alguĂ©m que nĂŁo tem pressa ou necessidade em provar o que quer que seja ao Mundo. Kandi Buruss Ă© uma estrela na televisĂŁo, graças Ă sua participação no reality show The Real Housewives of Atlanta. NĂŁo tem, tambĂ©m, que provar que nada a ninguĂ©m no campo musical, depois de ter feito parte das Xscape e, acto contĂnuo, como escritora cançÔes tĂŁo importantes como âNo Scrubsâ das TLC ou âBills Bills Billsâ das Destiny's Child. Simplesmente, estas duas facetas nunca se encontraram ao longo de todo este tempo, para a construção da carreira musical consistente que se previa na viragem do SĂ©culo.
Quando tudo parecia apontar para esse estrelato, a estreia com Hey Kandi... em 2000 foi, basicamente, ignorada por toda a gente. Com o fracasso comercial a levar ao seu despedimento da Sony. Seguiu-se um longo silĂȘncio, brevemente interrompido em 2006, com a falsa partida que foi âI Needâ a ditar nova paragem indefinida. Sem grandes alaridos, e com a invisibilidade do ep Fly Above a servir de teaser simbĂłlico pelo meio, Kandi Koated viu a sua difĂcil edição nos Ășltimos dias do ano transacto. O sĂndrome do âdifĂcil segundo discoâ tem aqui uma rĂ©plica inusitada, quando jĂĄ seria tĂŁo pouco expectĂĄvel que viesse mesmo a acontecer. Felizmente, Kandi Koated Ă© revelador dessa mesma parcimĂłnia, funcionando como continuação lĂłgica de Hey Kandi... com toda a maturidade que estes dez anos acarretam.
Ou seja, Kandi Koated é um disco tendencialmente clåssico no seu aprumo formal, sem espaço para aproximaçÔes ao crossover entre a Eurodance e o R'n'B perpetuadas pelo David Guetta nem para batidas tribais de alguém como o Danja. Privilegia a escrita de cançÔes em detrimento dos truques de produção, e com isso consegue uma contenção formal sem soar revisionista. Para isso, muito contribui o cuidado prestado de raiz à composição da Kandi (que assina em nome próprio ou em regime de colaboração a escrita de todas as cançÔes), optando por uma faceta eminentemente pessoal sustentada numa arquitectura sónica sólida, e nunca impositiva.
Tendo em conta o teor revelador das letras, trata-se da escolha mais natural para Kandi atingir o patamar de transparĂȘncia que se propĂ”e. Vicissitudes de alguĂ©m que se viu como "personagem" num reality show e encontra agora eco para uma igual exposição, de modo mais profundo e gratificante. Nada poderia ser mais explĂcito do que a tocante âLeroy Jonesâ, onde Kandi presta homenagem ao padrasto, âHe was a role model / He was there for meâ para confessar que âThat's the type of man me and my daughter needâ. Mesmo antes, âRiley's Interludeâ dĂĄ espaço Ă voz da filha para se cantar âWe're a team / Forever you and meâ. VulnerĂĄvel, e simultaneamente um pouco idiota, como o amor que ao longo do ĂĄlbum vai sendo disposto (enquanto força-motriz) nas suas mais diversas repercussĂ”es. A dor, a esperança, o desejo e toda a esperança que isso acarreta.
Maioritariamente mid-tempo, sem forçar choques estilĂsticos, Kandi Koated discorre ao longo de 55 minutos, sem grandes quebras (e com interlĂșdios que nĂŁo estorvam), numa consistĂȘncia que, sem surpreender, nunca resvala para o entorpecimento. Ne-Yo vem trazer o necessĂĄrio contraponto masculino na beleza soporĂfera de âMe and Uâ, constituindo um dos momentos mais memorĂĄveis de um disco sem momentos verdadeiramente dispensĂĄveis. Destacando outras cançÔes, âLuckyâ Ă© uma balada vaporosa de celebração que recorre Ă repetição da Ășltima sĂbala de cada palavra no refrĂŁo para um efeito tĂŁo habitual quanto eficaz, enquanto âHow Could You...Feel My Painâ convoca uma faceta mais dorida com dentes cerrados. No final, recupera-se âFly Aboveâ, para a afirmação de identidade. O piano subliminar Ă© quase trĂĄgico, mas persiste um sintetizador borbulhante que no refrĂŁo se eleva em consonĂąncia com âI fly above all the drama / I fly above all the hatersâ.
Numa obra que se pretende tĂŁo enraizada em vivĂȘncias pessoais, existe um risco eminente de cair na auto-comiseração ou num voyeurismo inusitado, mas Kandi Koated surge com uma personalidade marcada de modo tĂŁo indelĂ©vel que se ignoram algumas fragilidades lĂricas e exuberĂąncias vocais sem quaisquer problema ou embaraço. Quem teve dez anos para isto estĂĄ, certamente, de consciĂȘncia tranquila.