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Kandi Kandi Koated

2010
/ Asylum


Num meio tĂŁo dado Ă  documentação em tempo real do crescimento e/ou desvio artĂ­stico das suas personagens principais como o R'n'B, um silĂȘncio discogrĂĄfico de uma dĂ©cada Ă© um capricho de “estrela”. Ou de alguĂ©m que nĂŁo tem pressa ou necessidade em provar o que quer que seja ao Mundo. Kandi Buruss Ă© uma estrela na televisĂŁo, graças Ă  sua participação no reality show The Real Housewives of Atlanta. NĂŁo tem, tambĂ©m, que provar que nada a ninguĂ©m no campo musical, depois de ter feito parte das Xscape e, acto contĂ­nuo, como escritora cançÔes tĂŁo importantes como “No Scrubs” das TLC ou “Bills Bills Bills” das Destiny's Child. Simplesmente, estas duas facetas nunca se encontraram ao longo de todo este tempo, para a construção da carreira musical consistente que se previa na viragem do SĂ©culo.

Quando tudo parecia apontar para esse estrelato, a estreia com Hey Kandi... em 2000 foi, basicamente, ignorada por toda a gente. Com o fracasso comercial a levar ao seu despedimento da Sony. Seguiu-se um longo silĂȘncio, brevemente interrompido em 2006, com a falsa partida que foi “I Need” a ditar nova paragem indefinida. Sem grandes alaridos, e com a invisibilidade do ep Fly Above a servir de teaser simbĂłlico pelo meio, Kandi Koated viu a sua difĂ­cil edição nos Ășltimos dias do ano transacto. O sĂ­ndrome do “difĂ­cil segundo disco” tem aqui uma rĂ©plica inusitada, quando jĂĄ seria tĂŁo pouco expectĂĄvel que viesse mesmo a acontecer. Felizmente, Kandi Koated Ă© revelador dessa mesma parcimĂłnia, funcionando como continuação lĂłgica de Hey Kandi... com toda a maturidade que estes dez anos acarretam.

Ou seja, Kandi Koated é um disco tendencialmente clåssico no seu aprumo formal, sem espaço para aproximaçÔes ao crossover entre a Eurodance e o R'n'B perpetuadas pelo David Guetta nem para batidas tribais de alguém como o Danja. Privilegia a escrita de cançÔes em detrimento dos truques de produção, e com isso consegue uma contenção formal sem soar revisionista. Para isso, muito contribui o cuidado prestado de raiz à composição da Kandi (que assina em nome próprio ou em regime de colaboração a escrita de todas as cançÔes), optando por uma faceta eminentemente pessoal sustentada numa arquitectura sónica sólida, e nunca impositiva.

Tendo em conta o teor revelador das letras, trata-se da escolha mais natural para Kandi atingir o patamar de transparĂȘncia que se propĂ”e. Vicissitudes de alguĂ©m que se viu como "personagem" num reality show e encontra agora eco para uma igual exposição, de modo mais profundo e gratificante. Nada poderia ser mais explĂ­cito do que a tocante “Leroy Jones”, onde Kandi presta homenagem ao padrasto, ”He was a role model / He was there for me” para confessar que ”That's the type of man me and my daughter need”. Mesmo antes, “Riley's Interlude” dĂĄ espaço Ă  voz da filha para se cantar “We're a team / Forever you and me”. VulnerĂĄvel, e simultaneamente um pouco idiota, como o amor que ao longo do ĂĄlbum vai sendo disposto (enquanto força-motriz) nas suas mais diversas repercussĂ”es. A dor, a esperança, o desejo e toda a esperança que isso acarreta.

Maioritariamente mid-tempo, sem forçar choques estilĂ­sticos, Kandi Koated discorre ao longo de 55 minutos, sem grandes quebras (e com interlĂșdios que nĂŁo estorvam), numa consistĂȘncia que, sem surpreender, nunca resvala para o entorpecimento. Ne-Yo vem trazer o necessĂĄrio contraponto masculino na beleza soporĂ­fera de “Me and U”, constituindo um dos momentos mais memorĂĄveis de um disco sem momentos verdadeiramente dispensĂĄveis. Destacando outras cançÔes, “Lucky” Ă© uma balada vaporosa de celebração que recorre Ă  repetição da Ășltima sĂ­bala de cada palavra no refrĂŁo para um efeito tĂŁo habitual quanto eficaz, enquanto “How Could You...Feel My Pain” convoca uma faceta mais dorida com dentes cerrados. No final, recupera-se “Fly Above”, para a afirmação de identidade. O piano subliminar Ă© quase trĂĄgico, mas persiste um sintetizador borbulhante que no refrĂŁo se eleva em consonĂąncia com ”I fly above all the drama / I fly above all the haters”.

Numa obra que se pretende tĂŁo enraizada em vivĂȘncias pessoais, existe um risco eminente de cair na auto-comiseração ou num voyeurismo inusitado, mas Kandi Koated surge com uma personalidade marcada de modo tĂŁo indelĂ©vel que se ignoram algumas fragilidades lĂ­ricas e exuberĂąncias vocais sem quaisquer problema ou embaraço. Quem teve dez anos para isto estĂĄ, certamente, de consciĂȘncia tranquila.


Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
02/02/2011