A guitarra é um instrumento do caralho. É também um instrumento fodido. A sério. Os míudos sonham com ela ao ponto do air guitar ao som de “Wrathchild” causar acidentes domésticos mais ou menos graves. Foi alvo de um baptismo de fogo pelo Hendrix. Pete Townshend eleva a catarse electrificada ao ponto de a destruir, num feedback que se perpetua até ao momento em que a bruma de Seattle se dissipa para revelar um trio que a punha nas mãos de toda a gente. Pelo meio ascende a uma erudição ebuliente pelas mãos do Glenn Branca, para desembocar no abandono da No Wave e consequente propagação sónica. Do fuzz primordial conquista o drone e os ecos de Loveless perduram até hoje em formas cada vez mais voláteis.
Para um instrumento tantas vezes apelidado de obsoleto já deu também mostras de uma elasticidade gritante, ao ponto de se tornar virtualmente irreconhecível nas mãos de boas gentes como Keith Rowe ou Kevin Drumm, mas Eine Gitarre Ist Eine Gitarre Ist Keine Gitarre Ist Eine Gitarre... já o escreveram Taku Sugimoto e Annette Krebs. E é nessa capacidade de exploração das suas potencialidades que se escondem algumas das suas maiores virtudes, quando se resmunga que já tudo foi feito e que o Mundo não precisa de mais guitarristas. O que às vezes também parece uma verdade inquestionável.
Dá também azo às maiores atrocidades. Vitimada pelo reverb plastificado, usada como embuste para toda uma geração de shoegazers (ou pelos putos chico-espertos do pátio da escola) ou desvirtuada pelos dedos estéreis dos tech-geeks. Se invocar Yngwie Malmsteen roça a ofensa gratuita, relembrar o seu uso num género tão “aberto” como o jazz é cingir a ideia a pouco mais do que Sonny Sharrock, Sonny Greenwhich e algum Fred Frith, confinada que está a um academismo de sofisticação bacoca. Exige-se-lhe sempre uma alma. Estando todas estas coordenadas dispostas sem qualquer tipo de organização formal, e pegando na frase anterior chega-se, sem grande aprumo, a uma confluência de factores etéreos que leva invariavelmente aos blues primordiais.
Sem uma ligação minimamente estreita, são os apontamentos deixados em aberto pelas gravações arcaicas de Son House, Mississipi Fred McDowell ou Lightnin' Hopkins que enformam grande parte dos avanços que o instrumento tem vindo a conhecer nos últimos anos. Legado riquíssimo que não deve hoje ser recordado pelos propósitos da escala pentatónica submersa em brilhantina, mas antes por permitir no seu estado bruto uma apropriação aparentemente contraditória de linguagens que têm como fim último a expressão pessoal.
Gravitando nas suas próprias galáxias, nomes como Loren Connors, Manuel Mota ou mesmo o Ekehard Ehlers reverente de A Life Without Fear amplificam ensinamentos que não habitam numa esfera residual de influência, mas antes numa aproximação quase (permita-se o uso) espiritual a essa mesma. É exactamente neste plano racional que se encontra a obra recente de Bill Orcutt.
Depois de ter fundado, com Adri Hoyos, os seminais Harry Pussy, com os quais estabeleceu novos padrões para todos os avanços na linguagem do rock que se lhes seguiram, desapareceu completamente do mapa para se confinar a um longo silêncio de 12 anos. Silêncio esse dedicado a actividades mundanas de quem sentiu o cansaço de uma banda 24/7 como o casamento e a paternidade e à programação informática, interrompido aquando da preparação da antologia dos Harry Pussy para a Load e cujos resultados se revelaram na sua plenitude nesse magistral disco que é A New Way to Pay Old Debts e que se vê alvo de uma, mais do que merecida reedição numa eMego em fase de aparente reestruturação de objectivos.
Lançado pelo próprio no final de 2009, depois de um 7” discreto intitulado High Waisted (incluído também nesta reedição), A New Way to Pay Old Debts foi colhendo os melhores louvores por todo o sítio que verdadeiramente se interessa e interessa. Elogios extremamente prementes quando se trata do mais crucial disco de guitarra solo desde Ballads de Derek Bailey (evitado conscientemente neste texto pelo seu fantasma omnipresente em todos aqueles que fazem da guitarra um organismo vivo). Acto contínuo, um dos discos mais importantes saídos nos últimos anos. Sem merdas.
Transitando da guitarra eléctrica dos seus tempos nos Harry Pussy, para uma velhinha Kay acústica que foi continuamente reparada, Orcutt consegue com apenas quatro das seis cordas do instrumento reinventar toda e qualquer abordagem reconhecível a este mesmo, com recurso a uma linguagem profundamente idiossincrática, que não descura um conhecimento profundo das mais diversas linguagens em torno da improvisação. Desafiando constantemente as habituais noções de harmonia, timbre e ataque, a entrega de Bill Orcutt é profundamente física e quase percutiva. Impetuosa no modo como as cordas (ou mesmo a guitarra) parecem sucumbir constantemente sobre os seus dedos, enquanto encontram um espaço consciente para a ressonância característica da própria guitarra.
A New Way to Pay Old Debts não apareceu como um trabalho tentativo ou vestigial de um músico obsessivo com a procura de uma linguagem personalizada, antes como um resultado final dessa mesma obsessão, num léxico abrangente cujos precedentes acabam por se dissipar perante o peso da própria obra. Por isso mesmo e tendo em conta que foram gravadas num mesmo espaço temporal reduzido (entre Maio e Junho de 2009), tanto as duas malhas de High Waisted como as quatro até agora desconhecidas acabam por se encaixar nesse mesmo contínuo, não sendo reveladoras dos processos que poderão ter levado à obra maior (obra prima), nem dos caminhos vindouros para Orcutt (para tal, existe já Way Down South).
Aglutinando referências tão díspares como Cecil Taylor, Ramon Montoya, Glenn Gould ou Joseph Spence, a música de Orcutt dilui-as respeitosamente, numa capacidade anímica de conjugar directrizes num espectro melódico tão vasto quanto paradoxalmente focado no seu princípio base. Ou seja, quando a voz aparece em espasmos (de modo mais enfático em “My Reckless Pants”), esta acarta a influência de Gould (ou mesmo Spence pelo binómio voz/guitarra) enquanto a descontextualiza ao ponto de tornar aqueles gritos em algo profundamente seu.
Um grito que é mais uma extensão do ataque impetuoso do corpo de Orcutt à guitarra. Uma abordagem sem contemplações estanques, retendo toda a expansividade e poder de fogo da sua banda anterior mas remetendo-a ao seu nervo. De uma entrega nervosa, num pára-arranca meticuloso na sua imprevisibilidade, que apenas em “Cold Ground” se deixa levar numa estrutura mais branda (compreende-se o porquê de ser a última malha da edição original). É, por isso mesmo, um registo nevrálgico, mas nunca uni-dimensional dada a sua complexidade harmónica.
A guitarra de Bill Orcutt é, em suma, uma procura constante do seu corpo por uma máxima de expressividade sensorial. É uma guitarra despida de qualquer recurso estilístico, ao ponto de soar intransigentemente singular, mas escancarando aquilo que tem de mais fascinante. Não esconde o criador, mas enfatiza-o, expondo as suas limitações enquanto se deixa levar num vislumbre de possibilidades absolutamente entusiasmante. É uma guitarra. Quem a toca é Bill Orcutt. Respeitem-nos, caralho.