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Tommy Guerrero Living Dirt

2010
Rush! Production / AWDR/LR


É um alívio saber que Tommy Guerrero não depende apenas da música para viver, o que não significa também que os seus discos sejam propriamente maus ou pouco merecedores de atenção. Não é esse o caso, de facto. Mas Tommy Guerrero é, enfim, um homem de outro tempo e não parece muito interessado em partir para outro. O tempo de Guerrero, na música, sucede-se então numa fase em que a britânica Mo’Wax começava a sair de cena (entretanto fechou), depois de todas as mudanças (e benefícios) que, durante a década de 90, infligiu na paisagem da música electrónica. Paisagem essa que dificilmente permaneceria igual após o incontornável Endtroducing….. (1996), de DJ Shadow, e as coordenadas que a Mo’ Wax garantiu ao trip-hop e downtempo.

No seguimento de toda essa revolução, Tommy Guerrero conheceu a sorte de ser editado pela Mo’Wax que o instruiu e que ainda hoje ecoa nos puros beats de rua que vão preenchendo os álbuns do californiano. O reconhecimento (e alguma sorte) de Tommy como músico haveria de chegar em 2003, quando a revista Rolling Stone escolheu Soul Food Taqueria como o segundo melhor disco do ano. Pese embora algum exagero nessa distinção, há que reconhecer em Soul Food Taqueria a riqueza de estilos, uma visão lo-fi muito própria (que ainda se mantém), o fabuloso vício "Organism" e a utilidade que o disco pode ter como falsa emissão de rádio (quase pré-GTA) para tocar discretamente numa lojinha.

Em geral, o norte-americano será sobretudo conhecido como uma verdadeira lenda viva do skate (foi dos primeiros profissionais da modalidade) e pelo estilo único que exibe ao descer as ruas da sua São Francisco. Sabendo desta sua reputação num desporto, vá lá, radical, podemos apenas acreditar que Tommy nunca chegou a gozar de férias pagas pelos festivais portugueses só mesmo porque a sua música é difícil e pouco ou nada cantarolável (os temas são sobretudo instrumentais). Segunda vaga de alívio: Tommy Guerrero não é Jack Johnson.

Tommy Guerrero não tenta sequer ser alguém excepto ele próprio neste novo Living Dirt, que envereda novamente por beats de manga à cava, desta vez acompanhados por uma guitarra associável a um John Frusciante livre de “ressaca” (ameaça quase sempre à espreita nos discos em que o ex-Chili Pepper está visivelmente na merda). E ainda que o aspecto áspero destes beats leve a crer que alguém não renova o seu software desde 1997, o espólio rítmico da cidade é representado de forma diversa (ainda que primária) nas incursões pela house, boogie e música latina. No fundo, Tommy Guerrero compõe soul music para o skater culturalmente expansivo, e, nessa vertente, Living Dirt funciona muito bem.

O Japão, que costuma recompensar a convicção dos artistas, é, neste caso, o país que lança exclusivamente Living Dirt, com uma daquelas lombadas especiais (o obi-strip) e um livrete cheio de classe. A gravação, por sua vez, tomou apenas um punhado de dias de Abril passado e isso reflecte-se no efeito rudimentar de um disco que procura muito mais ser do que agradar. Tommy Guerrero toca para quem gosta, sim, mas também para quem admite batalhar o mistério e as primeiras sensações de estranheza para depois chegar ao (recompensador) universo musical de alguém que só quer estar na dele.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
17/09/2010