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Orelha Negra Orelha Negra

2010
Arthouse


O recurso ao cancioneiro português – património raramente vasculhado pela actual geração do sampler – poderia ter sido um objectivo. Ainda não o foi. Mas compreende-se que um projecto português que se dá pelo curioso nome de Orelha Negra – e ostenta um logo-tipo com reminiscências do mítico logo da Stax –, tenha preferido mergulhar de cabeça no rico e infinito filão sonoro afro-americano. Em relação ao que se tem feito com regularidade nos últimos 30 anos, o que aqui é exposto é tudo menos desonesto; e é sempre bom recordar os exercícios operacionais de gente mundo fora, ocasionalmente ligada à causa hip-hop, que também ousou, com sabedoria, remexer na matéria-prima – que a era de ouro da soul, do r&b ou do funk deixou como legado – para criar mais-valia. Aqui o virtuosismo não vai tão longe.

Orelha Negra não inventa a roda. E por à prova a memória colectiva através de um exercício especulativo como este não é particularmente original. Porque se é no recurso engenhoso da produção que este colectivo de experientes músicos edificam esta eficaz acção sonora, já não será na manipulação da matriz negra que atingem a singularidade. Mas há mais neste disco que o mero desfile de pedaços de história captados pelo equipamento que revolucionou as técnicas de produção musical. Aqui há uma dinâmica live que reforça a missão do colectivo na divulgação da missiva.

Mesmo que se conceba a ideia que este disco de estreia deste super-grupo não tenha como alvo o mais fervoroso melómano (sempre ávido de novidades e inventividade), posta de parte fica também, desde já, a ideia que foi para facturar à conta das massas mais arredadas destes sons que Sam the Kid, Fred Ferreira (Buraka Som Sistema), Francisco Rebelo e João Gomes (Cool Hipnoise) e o DJ Cruzfader se juntaram. Começando as divagações com um manifesto chamado "Memória", esperança na lembrança e no melhor que a alma tem para dar já dá algum alento ao melómano. Especialmente para o que poderá vir a considerar recompensador no fim.

Não sendo retumbante o que por aqui se ouve, é justo reconhecer nesta operação a vontade de criar uma energia própria e de proporcionar genuíno prazer. Aqui não existem grandes rodeios. Os Orelha Negra vão direitos ao assunto que os une. Talvez demasiado directos no entretenimento a que se prestam. Os bons momentos são inevitáveis e facilmente os sons se colam ao ouvido. Mas apesar da consistência do conhecimento e o bom gosto que revelam – fruto da experiência profissional de todos –, não deixa de pairar por aqui uma ideia de savoir-faire um pouco forçada. Orelha Negra é um exercício oportuno, sem dúvida, com uma produção impecável, mas sem qualquer marca ou brilhantismo que o distinga em especial da obra de uns Gnarls Barkley ou de um DJ Shadow.


Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com
07/05/2010