À partida, a escrita sobre algo como esta compilação seria inútil, por se reverem desde logo qualidades intrÃnsecas a um objecto desta natureza. Próximo do serviço público, este disco com curadoria de Victor Gama procura promover alguma da música mais refundida do interior angolano, que de outro modo muito dificilmente teria acesso a ouvidos ocidentais. Louvável, mesmo que possam persistir “valores†mercantilistas sobre toda esta acção de bom senso. E não de boa vontade.
Isto porque, são inúmeras as virtudes a salientar da música de Angola em toda a sua multiplicidade. E distante da mais horrÃvel terminologia de sempre (que evito propositadamente). Despidas de artificialismos de estúdio, as recolhas inclusas em Tsikaya – Músicos do Interior mantém toda a pobreza de recursos de algo tão genuÃno, mesmo que abrilhantadas por uma definição sonora superior a muitos dos objectos gravados em caracterÃsticas condições roufenhas de provÃncias onde o walkman ainda é uma tecnologia vigente. Conferir nas inúmeras edições do maravilhoso blog Awesome Tapes From Africa.
Operando esse desvio a centros urbanos onde o ritmo do kuduro, a sensualidade da kizomba ou o calor do semba se fazem sentir com mais incidência, a música do interior angolano reflecte essa mesma ruralidade num todo acústico de instrumentação simples e recorrendo aos mais variados meios para a celebração ou exorcismo. Aquele facilitismo em traçar um paralelo com o gospel, enquanto via para a redenção. Historicamente, é existente.
No contexto de uma tradição, a idiossincrasia faz-se da matéria com que os músicos trabalham esse mesmo legado. Recorrendo a instrumentação particular, muitas das vezes feita pelos próprios, as diferentes tonalidades encontradas em Tsikaya – Música do Interior reflectem as linguagens tradicionais das provÃncias de origem (que se estendem entre Benguela, Huila, Cuando-Cubango e Cuene) enquanto as submetem à s intricassias de cada intérprete. Ou o modo como superam essas limitações óbvias com recurso a uma inventividade desarmante na sua inocência.
Sendo a generalidade da compilação feita de momentos rarefeitos (reflexo dessa mesma “pobreza de recursosâ€), mantém uma saudável coabitação de registos que, entre a celebração rÃtmica do Grupo Hanha do Norte e o mantra possesso do Grupo de Miranda Niva, mostram um quadro vivo de música tão litúrgica quanto profundamente telúrica. As canções luminosas dos LÃderes da Difusão Romântica Rural (nome do caralho) e de Aurélio Massojie e David Ndumbo mostram os momentos mais acessÃveis (pela familiaridade) da compilação, num contraponto com a aspereza solitária de Avelino Chico. Um todo respeitoso de onde se destaca a absolutamente sublime prestação de Inácio Chigando e Rodrigo Sekulo. Minimalismo hipnótico, conduzido pelas cordas da thcisumba, sobre o qual Sekulo improvisa numa voz desencantada as misérias do povo da provÃncia de Benguela.
Mais do que um postal turÃstico ou cultural de jeito burguês, Tsikaya – Músicos do Interior é uma respeitosa homenagem à sobrevivência de músicas ancestrais e à música enquanto expressão pura dessas mesmas vicissitudes. Sem o maniqueÃsmo da aculturação, vivem assim numa plataforma global que permite o seu reconhecimento devido além do momento criativo. A passagem pelo site http://www.tsikaya.org, será até a melhor via para a descoberta. Este texto, vale o que vale. E isso, é pouco mais do que uma mera peça informativa de um projecto que merece todo o nosso carinho.