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Pavement Brighten the Corners (Nicene Creedence Ed.) [Reedição]

2008
Domino


É curioso pensar nos Pavement como uma das bandas determinantes da década de 90 que mais tardou na estabilização da sua logística. Por logística, entenda-se o acesso regular a um estúdio comum, uma distribuição europeia decente, esforços promocionais devidamente recompensados e a manutenção da integridade física em palco. Em ocasiões diferentes, os Pavement viram-se privados dessas condições. A recapitulação das “quatro maldições logísticas” obriga a referir – respectivamente - uma banda dividida por diversos estados, a insatisfação que antecedeu o convite (europeu) da Domino, as náuseas associadas às filmagens do teledisco de “Rattled By the Rush” (deserdado pelos próprios) e um lugar no Festival Lollapallooza, que, uma vez pelo menos, resultou em notória hostilidade por parte do público (frustrado por não reconhecer imediatamente “riffs de mosh”, de acordo com Thurston Moore). Serve hoje a lenda para provar que os Pavement prevaleceram heroicamente. Numa década habitualmente relembrada pela parasitação do filão grunge e pós-grunge, os Pavement sofreram e provocaram o número suficiente de acidentes para retardar a acomodação que tantas vezes paralisa uma banda.

Confirmando a teoria do genial fugitivo à solta, Brighten the Corners, quarto volume da sagrada enciclopédia, será porventura o álbum que mais destaca os Pavement como unidade capaz de aproveitar a bipolaridade oferecida pelas melhores canções. Imbuídos num construtivo espírito de cosa nostra, os temas de Brighten the Corners ancoram normalmente no fenomenal sentido pop de Stephen Malkmus. Esse que, por sua vez, provoca a gravitação dos restantes instrumentos num movimento mais solto e contagiado pelas liberdades de uma jam (o vaivém “Type Slowly” confirma-o). Não admira que os Animal Collective, bem cientes do método, sejam tantas vezes apontados como herdeiros do arquétipo Pavement (isto quando ambas as bandas são conhecidas pela adulteração constante dos seus temas mais familiares). Reavaliado à luz de hoje, Brighten the Corners representa o último esforço colectivo dos Pavement e o primeiro a indiciar alguma da desbunda de guitarras que renasceria mais tarde nas aventuras de Stephen Malkmus com os Jicks.

É também sabido que Stephen Malkmus sempre foi demasiado feroz na “guerra santa” declarada aos falsos-indies para alguma vez recuar nessa missão e passar a liderar outro circo de pulgas amestradas pela MTV. Exemplo disso, Wowee Zowee, lançado em 1995 (ano altamente propício à readopção da orfandade Nirvana), atrevia-se a ser um lindo campo minado de excentricidade, diminuindo, com isso, as hipóteses de angariar uma simpatia fácil (que não bate certo com o estrilho ostensivo de “Flux = Rad”). De igual modo, Brighten the Corners corrompe expectativas e esquiva-se do óbvio sempre que alarga a rédea das guitarras e amplia o diâmetro de um rock tão barbudo como a América de 70, por onde Stephen Malkmus serpenteia depois a sua inventividade lírica mundialmente reconhecida (a posição do réptil na capa sustenta essa perspectiva). Percebe-se então onde pára a lírica cornucópica (e a arrogância desportiva) de Malkmus quando, logo no primeiro verso de “Stereo”, dispara: Pigs, they tend to wiggle when they walk (s.o.s.: Billy Corgan abatido). Ficamos logo aí a saber que Stephen Malkmus ainda é o mais convincente embaixador de uma verdade oculta: todas as palavras possíveis num tabuleiro de Scrabble podem ser aplicadas numa excelente canção. Tudo se transforma na engrenagem de Malkmus.

Todas as sobras e sessões da época servem também para “pimpar” as abundantes reedições orientadas pela casa Matador, que, a cada dois anos, repesca um dos chernes na cesta Pavement. Brighten the Corners não representa excepção: sem deslumbrar no que respeita a lados-b e curiosidades, também não tem um “Shitty Lane” para cada “Shady Lane”. “Then (The Hexx)”, por exemplo, antecede quase directamente a cadência de guitarras que conhecemos aos Mogwai (condóminos na Matador várias vezes gabados por Stephen Malkmus). A excelente faixa, outrora estabelecida como abertura para o álbum presente, só mais tarde viu a luz do dia como lado-b de “Spit on a Stranger” e como parte de Terror Twilight. Os restantes extras aqui alinhados também não merecem o esquecimento absoluto: o brilho singular de “Beautiful as a Butterfly” e “Westie Can Drum” isola-as do conjunto principal, mas promove-as a fabulosas peças soltas do catálogo Pavement (tantas vezes aclamado pelo valor das mesmas). De resto, “Grave Architecture”, em versão XXL, tal como escutada num programa de John Peel, presta tempo de antena a um baixo tão memorável, no seu aspecto de bicicleta que apetece montar, como era na sua primeira encarnação, em Wowee Zowee. “The Classical” e “Space Ghost Theme” (parte um e dois) são liberdades que se concedem aos Pavement com agrado.

É evidente que Brighten the Corners chegava para limpar a concorrência do seu tempo e para envergonhar muitas das bandas que actualmente requentam o legado aqui alargado. Por esta altura, contudo, os Pavement eram já uma banda em recessão criativa e isso faz com que Brighten the Corners não ameace sequer a ordem do pódio, que, independentemente dos diferentes ajustes, é preenchido pelos três primeiros discos. Ainda mais afastado das medalhas, o derradeiro Terror Twilight pecava já por ser incaracteristicamente defensivo (solicitar a produção de Nigel Godrich denunciava desespero) e afunilado pela supremacia de Stephen Malkmus na criação de alinhadinhos bombons pop como “Major Leagues” e “Ann Don’t Cry”. À parte, Brighten the Corners ocupa lugar intermédio em grande parte das escalas Pavement. Acaba por ser um empreendimento demasiado afectado pelo peso de uma “tesão pop”, imposta por uma abertura perfeita, com a dupla “Stereo” e “Shady Lane”, que desconhece continuidade nas restantes faixas (um pouco adiante, “Date w/ IKEA” é uma ruptura imoralmente sónica). E esse é apenas um dos sintomas perceptíveis num disco indisposto a competir e, ainda por cima, nada preocupado com a hipótese de passar ao lado. Sobra, ainda assim, a conclusão inevitável: os Pavement a jogar em casa ganham sempre.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
06/03/2009