A verdade é proveitosamente relativa na descrição que o explorador Marco Polo faz d’ As Cidades Invisiveis para impressionar o imperador Kublai Kan, no livro de Italo Calvino. De um modo comparável, os Autechre quiseram, com o nono disco, oferecer um conjunto de paisagens que passam bem sem a medida da razão ou da contextualização: encurtaram as faixas (para um terço da duração alcançada no mais graduado Untilted), transformando-as em ginetes mais frontais, robustos, armados até aos dentes com uma pólvora digital, inevitavelmente refinada durante quase duas décadas de electrónica todo-o-terreno em permanente revisão.
O facto de Quaristice se assumir como um plano de assalto em 20 movimentos nĂŁo o impede, mesmo assim, de ser eclĂ©tico nos passos que dá rumo a esse objectivo: derrama samples, sintetizadores e bife digital sobre a hĂ©lice da imprevisibilidade e aproveita os salpicos para pintar quadros intricadamente crĂpticos, que ainda lembram, contudo, o sufoco imposto pela techno de Detroit ou a trituração de recursos da Planet Mu mais abusada. Tomando a liberdade da era madura como conceito aberto, o disco progride atravĂ©s de ameaça que se sobrepõe a ameaça, calamidade que pisa os calcanhares de outra calamidade (atenção ao peso titânico de alguns beats vindos do futuro), como um camaleĂŁo que pigmenta a sua pele sem deixar de parte as cores de árvores trepadas no passado (o dĂptico conclusivo formado pelas “Notwo” e “Outh9x” recupera os tons baços de um ambient que Ă© parte basilar do DNA da dupla britânica).
Entre a horta de transgĂ©nicos descobrem-se tambĂ©m uns quantos frutos insĂłlitos. Faixas há que estĂŁo carregadas de graves sĂsmicos que mordem a ponta da orelha como um cĂŁo que quer arrastar alguĂ©m atĂ© ao local do crime. E o crime pode bem jazer adormecido numa “Notwo” que muito recorda “Laura Palmer’s Theme” de Angelo Badalamenti, ainda que adaptada a uma (ir)realidade Twin Peaks 2040 (com a velha do tronco a segurar um iPod em vez do dito).
Fica a ideia de que Quaristice encontra os Autechre numa fase em que a prosperidade anda de mãos dadas com o esbanjar deliberado de conteúdos armazenados (note-se que o disco da Warp conta com vários lançamentos anexos). Haja estômago que ajude a digerir um bolo cuja fava é mesmo a sua abundância pouco criteriosa.