Grande parte dos livros dedicados ao sobrenatural impressos em 1984 encontram-se agora incrivelmente desactualizados. Aqueles grandes calhamaços, colocados na estante mais inalcançável do quarto da tia mais freak, pareceriam insuspeitos se agora estivessem entre manuais didácticos e livros do Pinguim Sorridente (ou o que seja que as crianças lĂŞem hoje). Um miĂşdo habituado a ligar a televisĂŁo a partir das 11 da manhĂŁ já nĂŁo se impressiona com um vulto branco sobreposto a umas escadas apodrecidas numa montagem mal amanhada pelo menos esforçado trabalhador da Reader's Digest na dĂ©cada de 80. Existem apresentadores de talk shows bem mais temĂveis que fantasmas pouco credĂveis. A culpa Ă© de George Lucas, que eternizou a maquete consistentemente tridimensional com a primeira trilogia da Guerra das Estrelas e aniquilou-a depois com o abuso digital da terrĂvel trilogia das prequelas. Os putos de hoje sĂł se acagaçam com grandes titĂŁs e bestas desenhadas em computador. AlguĂ©m nascido em 1979 quase sente vergonha de confessar hoje em pĂşblico que chegou a tilintar os dentes com o surgimento em cena dos vilões do Caça-Fantasmas (o um ou o dois).
Esse fosso de ingenuidade, que separa as mentalidades de 1984 das de 2004, parece nĂŁo impedir os Thank You de procurarem, com a novidade Terrible Two, provocar um medo old school - dos filmes com vilões acĂ©falos e mulheres esventradas aqui e ali – mais do que um terror psicolĂłgico sofisticado no seu enredo. Para triunfarem em manobra tĂŁo assumidamente retro, sem que a mĂşsica perca a frescura que a torna apetecĂvel aos ouvidos contemporâneo, os Thank You transparecerem muito convincentemente a ideia de que, para eles, nĂŁo existe tempo, espaço ou desnĂvel estĂ©tico a demarcar o pĂłs-rock mais ruidoso e maciço de tudo aquilo que consagrou os filmes sangrentos de Dario Argento e George Romero. É como se os Boredoms nunca tivessem existido no livro de referĂŞncias conscientes dos Thank You, mesmo que sejam perceptĂveis no rĂspido cilindrar rĂtmico de partes várias de Terrible Two, que, alĂ©m disso, possui um fĂ´lego sobrenatural em termos de paranĂłia e pujança psicĂłtica e de como ambas tornam incessante o jogo de “gato e rato” (ou pantera e morcego) que se mantĂ©m activo durante a sua duração, a partir de combinações diferentes que envolvem guitarras, orgĂŁos vintage e precursĂŁo.
Mesmo que de um trio oriundo de Baltimore, cidade muito em voga que desova novos discos todos os dias, fosse logo Ă partida natural receber um dilĂşvio de alvoroços tribais e danças de guerra (por aqui tambĂ©m verificados), os picos de intensidade vividos em Terrible Two livram-no de ser apenas mais um disco. A intensidade bate ainda mais forte por ser imprevisĂvel na sua chegada. Isto porque Terrible Two habitua o peito, atĂ© que este esteja pronto a receber parafusos (sintetizador que mĂłi), para, de repente, começar a disparar uma quantidade interminável de pregos (fagulhas de bateria) na direcção do mesmo alvo, mas vindos de canos de espingardas posicionadas por toda a parte. Talvez seja por isso que "Pregnant Friends" reclama por silĂŞncio num casino desertificado e, logo de seguida, mostra que Ă© o escavaco e a electricidade rugosa o carrasco que manda ali. Os Thank You perderam todo um segundo disco a manter de pĂ© um morto com rituais ora violentos, ora simplesmente tenebrosos. É intrigante pensar nas taras que podem levar uma banda norte-americana a celebrar por aqui um funeral enigmático Ă mais eufĂłrica moda dos mexicanos.