bodyspace.net


Thank You Terrible Two

2008
Thrill Jockey


Grande parte dos livros dedicados ao sobrenatural impressos em 1984 encontram-se agora incrivelmente desactualizados. Aqueles grandes calhamaços, colocados na estante mais inalcançável do quarto da tia mais freak, pareceriam insuspeitos se agora estivessem entre manuais didácticos e livros do Pinguim Sorridente (ou o que seja que as crianças lêem hoje). Um miúdo habituado a ligar a televisão a partir das 11 da manhã já não se impressiona com um vulto branco sobreposto a umas escadas apodrecidas numa montagem mal amanhada pelo menos esforçado trabalhador da Reader's Digest na década de 80. Existem apresentadores de talk shows bem mais temíveis que fantasmas pouco credíveis. A culpa é de George Lucas, que eternizou a maquete consistentemente tridimensional com a primeira trilogia da Guerra das Estrelas e aniquilou-a depois com o abuso digital da terrível trilogia das prequelas. Os putos de hoje só se acagaçam com grandes titãs e bestas desenhadas em computador. Alguém nascido em 1979 quase sente vergonha de confessar hoje em público que chegou a tilintar os dentes com o surgimento em cena dos vilões do Caça-Fantasmas (o um ou o dois).

Esse fosso de ingenuidade, que separa as mentalidades de 1984 das de 2004, parece não impedir os Thank You de procurarem, com a novidade Terrible Two, provocar um medo old school - dos filmes com vilões acéfalos e mulheres esventradas aqui e ali – mais do que um terror psicológico sofisticado no seu enredo. Para triunfarem em manobra tão assumidamente retro, sem que a música perca a frescura que a torna apetecível aos ouvidos contemporâneo, os Thank You transparecerem muito convincentemente a ideia de que, para eles, não existe tempo, espaço ou desnível estético a demarcar o pós-rock mais ruidoso e maciço de tudo aquilo que consagrou os filmes sangrentos de Dario Argento e George Romero. É como se os Boredoms nunca tivessem existido no livro de referências conscientes dos Thank You, mesmo que sejam perceptíveis no ríspido cilindrar rítmico de partes várias de Terrible Two, que, além disso, possui um fôlego sobrenatural em termos de paranóia e pujança psicótica e de como ambas tornam incessante o jogo de “gato e rato” (ou pantera e morcego) que se mantém activo durante a sua duração, a partir de combinações diferentes que envolvem guitarras, orgãos vintage e precursão.

Mesmo que de um trio oriundo de Baltimore, cidade muito em voga que desova novos discos todos os dias, fosse logo à partida natural receber um dilúvio de alvoroços tribais e danças de guerra (por aqui também verificados), os picos de intensidade vividos em Terrible Two livram-no de ser apenas mais um disco. A intensidade bate ainda mais forte por ser imprevisível na sua chegada. Isto porque Terrible Two habitua o peito, até que este esteja pronto a receber parafusos (sintetizador que mói), para, de repente, começar a disparar uma quantidade interminável de pregos (fagulhas de bateria) na direcção do mesmo alvo, mas vindos de canos de espingardas posicionadas por toda a parte. Talvez seja por isso que "Pregnant Friends" reclama por silêncio num casino desertificado e, logo de seguida, mostra que é o escavaco e a electricidade rugosa o carrasco que manda ali. Os Thank You perderam todo um segundo disco a manter de pé um morto com rituais ora violentos, ora simplesmente tenebrosos. É intrigante pensar nas taras que podem levar uma banda norte-americana a celebrar por aqui um funeral enigmático à mais eufórica moda dos mexicanos.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
21/07/2008