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Osso Exótico + Z’EV / Bowline Osso Exótico + Z’EV / Bowline

2007
Crouton / Sonoris


Entender que os nomes que ocupam a esfera David Maranha servem para descrever a sua produção musical, pode até resultar de mera coincidência, é certo, mas não deixa, mesmo assim, de espicaçar a que se estabeleçam paralelos vários que aproximem ambas as partes. Até porque, ao abrigo de trabalhos recentes, dois dos quais considerados aqui, a noção de que existe de facto uma terminologia útil ao entendimento do todo Maranha ganha reforçado sentido e nitidez por efeito da transversalidade que tem vindo a assumir órgão Hammond na criação recente do autor do soberbo Marches of the New World. Perseguir e absorver as manifestações de um Hammond incessante nas suas revelações condiz inevitavelmente com o traçar do perfil de quem o toca.

A partir daqui, os significados que oferecem os dicionários para a palavra que serve de apelido a David (e ao irmão André) variam um pouco, sem nunca se afastarem por completo de possíveis definições para o som que o próprio arranca ao Hammond e a outros instrumentos: maranha s.f. 1. fios enredados, assunto intricado; 2. mistura, confusão, intriga, pacto; 3. enredo. Se não confundirmos “mistura” com “salganhada” ou “confusão” com “descuido”, servirão os significados alinhados como termos que reflectem parte considerável do espectro sonoro pertencente a alguém que, por imposição do nome de baptismo, parece ainda mais predestinado à vocação que o levou a manter – com notória visão e perseverança - os Osso Exótico, colectivo formalmente flexível mas de cerne imperturbável, desde 1989 até aos dias de hoje.

A conspiração não se fica por aí - estende-se também à morada lisboeta que consta de vários dos últimos discos que conheceram a mão de David Maranha: (Rua) Violante do Céu (onde a estreia de Bowline foi gravada e produzida em 2006), perpendicular discreta da Avenida de Roma. Quando se recebe nas mãos um envelope remetido de Violante do Céu, há nisso algum daquele misticismo que provavelmente se abateu sobre quem, em determinada altura, recebeu discos do obscuro Jandek enviados a partir de Corwood. Violante do Céu é, de resto, o nome de uma poetisa portuguesa muito aclamada no século XVIII. Acerca da mesma, atrevo-me a parafrasear: Ao gosto do seu tempo, preferiu temas como o amor, o temor de Deus e da eternidade, e o sentimento da vaidade das coisas humanas. Cultivou uma poesia que foi considerada sábia, intelectualizante e rica de hábeis jogos. A última dessas suas características, assim como a contemplação dedicada a elementos imensuráveis como Deus e a eternidade, são alíneas (ou pistas) que se encaixam também facilmente no cânone Maranha, principalmente no álbum partilhado com o venerável percussionista Z’ev (Stefan Weisser), em que David é obrigado a agigantar o seu órgão Hammond ao ponto de este não ser eclipsado pela mais disseminada e calejada autoridade de um instrumentista que praticamente nasceu com uma bateria nas mãos (sendo também ele um predestinado).

Sobre os dilemas do amor e a tirania de Cupido, Violante do Céu escreveu um soneto que tem o seguinte como primeiro verso: Que suspensão, que enleio, que cuidado. Estava provavelmente escrito que variantes da mesma “suspensão” e “enleio” servissem como impedimentos – quase magnéticos - para tudo aquilo que no disco de Bowline se fita e ameaça, sem nunca chegar a consumar um confronto. Em magnifica rota horizontal, Bownline efectua o registo dos despojos sobrantes de uma batalha cordialmente prometida, mas nunca cumprida, entre dois pólos – o violoncelista italiano Francesco Dillon e David Maranha – que, logicamente, libertam as suas próprias ressonâncias, tantas vezes circunspectas a um minimalismo crescente, e considerações referentes à ocasião sob a forma de discursos contínuos - drones - repletos de drama (sendo que a curta duração somada às quatro faixas veda o caminho à pretensão).

A dinâmica bipolar revela-se também no disco de colaboração com Z’ev que, mesmo assim, acumula qualidades e manobras interiores que o tornam completamente diferente do trabalho atribuído aos Bowline, sobretudo porque o primeiro se trata de um colossal tomo muito mais sujeito a desenvolver ciclos específicos que o aproximam talvez do que poderia ser o levantamento sonoro de Pompeia “antes”, “durante” e “depois” de estar coberta de cinzas (fases não necessariamente sucedidas pela mesma ordem no lançamento da Crouton). Enigmáticos são os passos tomados, nesse sentido, pelo órgão Hammond de David Maranha, que se supera a si mesmo nas proporções diabólicas que assume, Harmonium de Patrícia Machás e outros instrumentos de André Maranha, do lado dos Osso Exótico, e pela percussão assanhada à flor da pele escamada de Z’Ev, à medida que ambos avançam em toada de exorcismo mútuo que domina os primeiros quinze minutos da sua duração. Ultrapassada a precoce apoteose, Osso Exótico + Z’ev abre espaço para a reverberação própria da implosão (recolho zen?) a que é remetido o seu primeiro surto de febre primordial e cacofónica – que, até certo ponto, constitui também negação – algo pérfida, diga-se – do dilúvio de ruído que o disco antecipava inicialmente.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
09/07/2008