Enquanto os motins de hype fizeram sangue na praça e o tĂtulo do dubstep foi valor sujeito a todo o tipo de saque e oportunismos, o produtor britânico Kevin Martin, tambĂ©m conhecido por The Bug, manteve-se subterrâneo, sem dar muito nas vistas e sem necessidade de reivindicar os louros que lhe eram merecidos pelo determinante cunho que acrescentou ao gĂ©nero globalizado com a ascensĂŁo da (fugaz?) dinastia Hyperdub e dos seus principais talentos (entre os quais o prĂłprio). Ă€ sombra de uma discrição por si prĂłprio cultivada, Kevin Martin viu a caravana passar e nem sequer ladrou alĂ©m dos soberbos e sorrateiramente bombásticos singles “Poison Dart”, “Jah War” e “Skeng” (justificadamente incluĂdos em London Zoo). Abdicou do avanço – propĂcio a capitalização fácil - que lhe era proporcionado por Pressure, álbum de dimensĂŁo maior que, em 2003, estava claramente Ă frente do seu tempo e talvez demasiado afastado da atenção da maioria dos que perseguem e registam as movimentações desse mesmo tempo. Aquando do seu lançamento, Pressure era, no melhor dos casos, tomado como maduro, fatal e incendiário desfile digital de dancehall preparado para receber o futuro sobre os seus ombros de tradição jamaicana - fosse lançado hoje e provavelmente mereceria já catalogações como o dubstep e adereços perifĂ©ricos.
Quase parece que foram os tempos que se tiveram de adequar Ă s coordenadas vanguardistas facilitadas por Kevin Martin (enquanto The Bug, Ice ou God) e nĂŁo o inverso. Pelo que fez em Pressure e nos regulares singles, que sempre foram muito mais do que depĂłsito para as sobras, The Bug era legĂtimo merecedor de “uma palavra a dizer” antes de ser anunciado o funeral definitivo do dubstep como linguagem cujo processo de evolução se confunde com o de parte essencial da identidade musical da Londres dos Ăşltimos dez anos. O timing de London Zoo Ă© o de quem deixou a poeira assentar para poder erguĂŞ-la novamente na totalidade, renovada e com a força de uma tempestade.
A alguĂ©m que decidiu finalmente assaltar o posto cimeiro de produtor que espelha o momento vivido em Londres (ou Ă sua volta), nada convĂ©m mais do que desafiar as convenções tornadas regras por quem por lá cimentou os seus prĂłprios mĂ©todos, nem tanto somente no dubstep como na generalidade da mais inquieta (e insone) mĂşsica urbana que, a partir da periferia, cerca as grandes metrĂłpoles britânicas. London Zoo representa, pois, afronta a quem se sentir insultado pela sua atitude frontal e pelo carregadĂssimo sotaque caribenho do dream team de vocalistas (toasters) convidados por The Bug para largada de farpas afiadas e blood clot (grosso palavrĂŁo jamaicano) por toda a parte. Ou será apenas acidental o simbolismo do besouro que, na capa de London Zoo, ergue um crânio moribundo atĂ© perto de uma lua nocturna e, no outro braço, uma metralhadora em direcção ao sol de um dia decisivo? ParanĂłia de quem escreve ou entĂŁo London Zoo Ă© mesmo - na disputa do territĂłrio almejado pelo seu tĂtulo - um rude despertar (em táctica de guerrilha) apostado em desintegrar o traje vampĂrico de Burial (provavelmente o principal responsável pelo eclipse que secundarizou Kevin Martin). Enquanto Burial optou por revelar uma Londres adormecida nos seus hábitos nocturnos, sob hipnose de sub-graves, coberta por um manto de cor pĂşrpura, o antagonista The Bug prefere apresentar a capital como barril de pĂłlvora que viu o seu rastilho ser ateado por ritmos descarados e estrondosos ao ponto de provocarem a debandada de todos os animais aprisionados e agora inseridos num cenário pintado de vermelho-vivo salpicado.
Culpe-se por tudo isto uma assalariada da BBC chamada Marie Anne Hobbs (reconhecida embaixadora do underground londrino) que, em 14 de Fevereiro de 2006, semeou o inferno numa lendária sessĂŁo do seu programa de rádio Breezeblock, que contou com a interacção imediata entre o selectah The Bug e nada mais nada menos do que dez MCs britânicos, entre os quais Flowdan – descoberto nessa ocasiĂŁo e reutilizado por aqui nas cruciais “Skeng”, “Jah War” e “Warning” – e a predilecta Warrior Queen, ou Ari Up das Slits. Nessa sessĂŁo de Breezeblock, tal como em London Zoo, a sanidade Ă© um bem que se vai tornando cada vez mais escasso Ă medida que The Bug dispara ritmos sĂsmicos e ameaçadoramente monolĂticos, ao jeito de guarda prisional rebelde que decidiu soltar (o corpo e voz de) cada um dos reclusos ao som de um alarme industrial correspondentemente personalizado (Martin conhece bem a ginástica vocal de cada um dos seus patifes e aproveita isso ao máximo). É natural que a febre de amontoamento fizesse com que a fuga sucedida em Breezeblock fosse mais desorganizada. Por sua vez e sem deixar escapar um pouco que seja da energia concentrada, London Zoo Ă© todo o ensinamento acumulado rendido numa arrebatadora tese favorável Ă comprovação de que ainda há vida em Londres, primo direito de um The Brotherhood of the Bomb que os Techno Animal (projecto partilhado por Kevin Martin e Justin Broadrick) aproximaram mais do hip-hop apocalĂptico, alĂ©m de sĂ©rio candidato a um dos mais marcantes discos do ano.