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Adam Gnade Palaces / Whidbey Island / Honey Slides

2007
Bad Drone Media / Try Harder Records


À medida que se torna mais tridimensional e extenso o mapa narrativo que Adam Gnade prolonga através de um número sem fim de singles e EPs complementados por algum material escrito (dois romances e vários textos soltos), a ficção por ele desenvolvida transforma-se aos poucos numa realidade verosímil (tipicamente americana) que se vislumbra apenas nas criações do autor natural de San Diego, Califórnia. O universo que elabora parece ser exclusivamente seu. Faz isso com que os três EPs lançados em 2007 constituam peças adicionais no puzzle Adam Gnade e, ao mesmo tempo, igual número de passos em frente na adaptação que exige alguém que se dedica às suas próprias talking songs - instrumentais acompanhadas por voz de quem conta uma história e não de quem declama um poema ou um discurso. Até porque a toada de Adam Gnade em nada se parece com a assumida por Jello Biaffra ou Henry Rollins nos seus discos de spoken word. Inteligentemente, a duração de cada um dos EPs é curta e assim livre do peso enfadonho que teria o registo “falado†quando ultrapassasse os 30 minutos.

Adam Gnade conta até com a vantagem de poder falhar - até certo ponto - na música que rodeia a sua voz, quando a eloquência e marca própria desta última é o que basta para segurar as fundações dos temas incluídos nos EPs. É verdade que a música em si não se salienta assim tanto em relação à americana consistente de uns Giant Sand ou à folk onírica de toda a cena Fox Glove arquitectada por Brad Rose, mesmo que, no intimista e francamente pessoal Palaces, surja revitalizada por alguma inquietude experimental (nunca tanta como os press-releases apregroam) e field recordings que tentam emular as sensações próprias de um espaço norte-americano.

Ciente da necessidade de agitar as águas, para que não acumulem o lodo da folk sedentária, o EP Honey Slides, gravado em colaboração com os britânicos Youthmovies (incapazes de se repetirem), acaba por resultar numa terra de ninguém que engloba rock festivo e complexas paisagens electrónicas onde a voz do norte-americano é filtrada e tornada mais robótica (sem danos aparentes) - uma espécie de “Adam Gnade remisturado†que adopta literalmente essa tarefa na fantasia réptil-mística “Snake Lore, Part II: Hold Back the Flame, O Weary Friends!â€, que aproveita o mais sóbrio original de Whidbey Island para uma reformulação que mete ao barulho um violino constante e sons do avesso. Momento intenso.

Mas lá está – falhasse tudo isso e a voz de Adam Gnade continuaria a transparecer a América pelos olhos de quem ainda a descobre e dá a descobrir. Sente-se nele aquela angústia de quem tem o afecto disperso por vários amigos em diversos estados e a vontade de quem não teme uma noite perdida ao volante se esse for o sacrifício necessário para alcançar uma visão mais esclarecida do país sempre em transição. Adam Gnade fala como um narrador num filme de Gus Van Sant e não como um profissional numa publicidade estupidamente patriótica. A sua voz está para a América dos boémios e sonâmbulos, como a de Morgan Freeman para os filmes de fuga de prisão.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
04/07/2008