O comportamento de uma seita religiosa nunca é o mesmo quando diante e afastado das câmaras televisivas. Com objectivas ou microfones por perto, um pastor é obrigado a provar, por todas as vias possíveis e aproveitando cada segundo, que no seu templo reside realmente a salvação e o fim de todos os vícios. Off the record, presume-se que as coisas decorram de forma mais rotineira para os presentes. Não é de agora a tendência dos Indian Jewelry para se exporem como comuna freak de hierarquia mutável (os integrantes em digressão variam de concerto para concerto, “formação de estúdio” parece ser uma utopia irrepetível) - engrossar a teia de referências míticas e engendrar manifestações artísticas sugestivamente bizarras eram hábitos que acompanhavam a turma de Houston desde a sua formação enquanto Swarm of Angels (tronco a partir do qual brotaram todas as outras ramificações). Já em nome da Ourivesaria Indiana, os mesmos estranhos hábitos marcavam o óptimo Invasive Exotics em 2006. A complicação do trajecto fez-se também de entrevistas lacónicas, discos de projectos paralelos limitados a 10 cópias acessíveis apenas aos mais privilegiados, vídeos promocionais pouco esclarecedores.
Não se percebe ao certo se os Indian Jewelry procuram parodiar os traços caricaturais próprios da conduta freak ou se, pelo contrário, tropeçaram em todos os clichés possíveis dessa sina. O mistério formal vai prevalecendo, mas, desta vez, todas as dúvidas acerca da pertinência musical dos Indian Jewelry dissipam-se de modo aparentemente irreversível: isto porque Free Gold! é muito mais do que cobre pintado de dourado – é, sim, o confiante esbanjar de uma oceânica seiva shoegaze que, cedendo margem a um e outro capricho, vai cobrindo de imaculado ruído branco as vozes dispersas num eco perfeitamente esotérico, sem que essa trégua assinada no céu impeça as guitarras aladas de alinharem esforços em impressionantes confrontos com sintetizadores saturados mais afeiçoados aos imprevisíveis métodos de guerrilha.
Todo esse aspecto de guerra santa, associado à prática de shoegaze, faria adivinhar os Indian Jewelry como prováveis acólitos de uns My Bloody Valentine ou Jesus & Mary Chain esteticamente beatificados. Talvez esse seja apenas um ângulo de aproximação possível a Free Gold!, que, além disso, progride muito à imagem de disco em romaria sofrida pelo deserto: os elevados padrões de guitarra preservados em permanente circularidade são também aqueles que se sujeitam ao açoite violento de toda a parafernália analógica (ou, de outra forma, o deserto seria apenas uma auto-estrada com Via Verde para o tédio). Quase como uns Bardo Pond mais masoquistas, os Indian Jewelry de Free Gold! são praticantes de um shoegaze que pavoneia a sua juba de leão e que depois oferece a sua pata traseira ao veneno anómalo do escorpião que tem nos sintetizadores mais falíveis o seu espigão.
A mão que distribui Free Gold! encontra-se também calejada pelo seu historial burloso e desenvencilhado – a cada suspeita de bluff, que pressinta estagnação de ideias, os Indian Jewelry respondem com um all in que arrasta consigo fichas que ninguém esperaria encontrar em jogo. Entre as quais destaca-se uma “Hello Africa” que, aos seus sintetizadores espalmados pelo efeito cilíndrico do mandril, recupera todas as sensações de gozo possíveis de serem obtidas a uma música genérica para cena de duelo num filme de John Carpenter que tenha Kurt Russell como homem de acção (Fuga de Los Angeles., Jack Burton nas Garras do Mandarim, etc.).
Confirma-se uma vez mais que os Indian Jewelry produzem música out com noção assente do seu balanço out, o que logo, à partida, pode diminuir os índices de genuinidade que se medem ao sangue por aqui bombeado. Free Gold! é, contudo, objecto refinado, envolvente, divertido e intrigante ao ponto de triplicar a esperança de que seja diminuto o intervalo entre este e o próximo disco de Indian Jewelry. Perdoem-me os Kings of Convenience, mas Loud is the New Quiet e Free Gold será, ao lado de Street Horrrsing dos Fuck Buttons, um dos discos de 2008 mais propícios a visões e êxtases diversos quando escutado em alto volume nas colunas de um quarto inclinado nesse sentido.