bodyspace.net


New Bloods The Secret Life

2008
Kill Rock Stars


The Secret Life desfaz em pouco tempo um dos seus muitos segredos: pode o restante ano estrebuchar e multiplicar-se em lançamentos, e só muito dificilmente conseguirá amanhar um álbum tão autêntico e vibrante quanto este – o primeiro - no que respeita ao melhor uso conferido ao entusiasmo e “garra†que se apodera de alguém quando finalmente descobre um total à vontade nas suas manifestações artísticas, mesmo que essas sejam assumida e militantemente gay. Mãos ao alto então para receber o assalto desarmante de umas New Bloods que parecem ter ultrapassado umas quantas inseguranças e outras mais barreiras politicamente correctas para até aqui chegarem.

Entende-se que todo esse esforço foi justificado, quando, após assimilado o factor político inerente ao disco (ao qual acresce o facto de dois terços da banda serem afro-americanos), sobra apenas uma organização interna em tudo pronta para descomplicar as vias de comunicação entre os vértices: Cassia toma conta do baixo como se o pós-punk fosse uma invenção exclusivamente feminina, a mais robusta Adee gere a força e alcance do seu impulso com uma bateria polivalente em mãos, Osa toca violino como se convocasse o protesto e união de todos os povos ciganos - todas cantam como um coro de punhos revoltosos em determinados momentos mais amazónicos, e em conspiração comunal noutros mais reflectivos e cientes dos ciclos femininos. A guitarra, esse vil instrumento de contornos vagamente fálicos, fica de fora e não faz falta nenhuma.

Tudo o resto serve como arsenal de retaliação apontado a todos os sacrifícios impostos às vidas secretas de quem viveu demasiados dias aprisionado num armário de opressão. Parece até que a dualidade – provavelmente exercitada em experiências pessoais passadas - serve agora às New Bloods na oscilação dinâmica entre registos que, num The Secret Life desabafado de uma só vez, cruza o inadiável “doa a quem doer†de um pós-punk à flor da pele (inevitavelmente polvilhado pelas Raincoats), cumpre escala nalguns momentos mais próximos da poesia beat declamada como lida às entrelinhas das cicatrizes, e não evita sequer a sensibilidade exposta do lindo e harmonioso momento a capella que é “Day After Day†(versão de um original dos Earth & Stone, nome algo obscuro do reggae mais próximo das raízes).

A Kill Rock Stars – desde sempre dedicada a ampliar o tempo de antena reservado às mais inconformadas artistas femininas - volta a bater a sua picareta contra ouro puro na escavação incansável que leva o selo de Olympia (Washington) por aconselháveis paragens do subsolo do rock norte-americano. Terá de ser um segundo disco a decidir se é viável ou não a desconfiança do pobre perante tão generosa esmola, mas, por agora, The Secret Life vale como pepita à parte.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
16/04/2008