A América nunca foi terra de consensos. Provas evidentes serão os diversos espelhos das clivagens ideológicas que reflectem atitudes divididas entre o conservadorismo dos velhos costumes e o liberalismo fugaz que os novos tempos arrastam despreocupadamente. No centro encontraram-se os espectadores do desregramento de uma sociedade desequilibrada e em perpétuo bulÃcio; observadores atentos, permanentes, dos diversos desnivelamentos de raciocÃnio. IndivÃduos culturalmente conscientes que digerem a hipocrisia das contradições resultantes das diversas verborreias intelectuais. No fundo as consciências morais de uma nação constantemente obcecada com a imagem de unidade mas imune à ideia de divisão.
A lucidez e a integridade ainda serão as armas indicadas num combate de contrariedades, senão mesmo as proporcionais na exposição das contradições na forma de tratamento da condição humana. A música nunca se arredou da sua competência enquanto ferramenta cultural difusora de ideias. Ela sempre se manteve consciente da realidade, consciente da condição humana e da sua atitude perante o amor ou a adversidade.
O impacto da música só é profuso quando a música tem um rosto que sustente uma politica. Alguém interventivo, pouco preocupado com o maniqueÃsmo. Alguém essencialmente sensÃvel ao meio que o rodeia, alguém capaz de entender o universo como ele realmente é; com os seu defeitos e virtudes. E mesmo que se corra o risco de a imagem traçada ficar ligeiramente desfocada, não deixarão de haver espÃritos gratos pelo mÃnimo de clareza em dias cinzentos.
Erykah Badu estará agora entre as figuras de pódio desse centro espectador. O seu novo disco calcula-se entre a consciência pertinente de uma nação adormecida e a excelência sonora que veicula o verbo. Dai advém a apropriação da América pela artista e da assimilação dos diversos estados de alma – sempre contraditórios – de uma nação que promete o sonho raramente realizável. New Amerykah não será um manifesto polÃtico, talvez também nunca foi idealizado como tal. Entre a pertinente alfinetada politica e a mesmorizing soul, instala-se a certeza da palavra enquanto se descobre a importância das invocações dos espÃritos ancestrais da mãe Ãfrica ou criada a imagem maledicente do beco urbano onde a humanidade decidiu fazer a sua vida.
Karriem Riggins, Madlib e 9th Wonder não terão sido alheios à imagem final que se observa nesta obra conceptual supostamente dividida em duas partes. Como produtores terão sido determinantes na orientação sonora de New Amerykah, tendo mesmo sido essenciais na interpretação dos desejos mais ambiciosos de Erykah Badu.
A música de New Amerykah, Pt. 1: 4th World War é eloquente e certeira mesmo quando reflecte diversas escolas criativas. As ideias nascidas inicialmente no beco crescem num amido cosmopolita onde as pessoas não são ignoradas. As palavras contam histórias e experiências. O hip-hop, o jazz, o funk e a soul são o fermento que lhes dão importância estética ou, mesmo no caso de alguns temas, envergadura clássica. E não sendo, repita-se, um manifesto polÃtico, não deixará de estar muito perto de um verdadeiro manifesto sonoro onde a voz libidinosa de Erykah desempenha papel fulcral. Um evidente e notório catalogo de sabedoria que se identifica com a nossa realidade urbana. Um trabalho maduro, confiante, belo, atrevido e estruturalmente irrepreensÃvel. Por outras palavras: essencial.